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TEXTOS

  • Foto do escritorPlínio Zuni

Vale un Potosí

Em espanhol, ainda se usa a expressão ”vale un Potosí”, eternizada por Don Quijote de La Mancha — o mais lúcido de los cabaleros ibéricos — para se referir à uma grande fortuna, empreendimento altamente lucrativo ou, ainda, a qualquer trambique de sucesso.

Potosí já foi a cidade mais valiosa do mundo por conta do Cerro Rico, ou Sumaq Urqu, a montanha de 4.800 metros de altura toda recheada de prata que alimentou os sonhos e luxos dos saqueadores espanhóis durante mais de dois séculos. De lá, partiam para a Europa galeões recheados de riquezas, deixando em troca milhares de cadáveres indígenas. Foi para Potosí que os espanhóis começaram a importar escravos africanos, pois os Quechuas e Aymaras escravizados estavam morrendo mais rápido do que dilapidavam a prata, fosse de exaustão, rebeldia, epidemias europeias ou engolidos pela montanha que, apiedada de seus compatriotas, concedia-lhes ao menos a dignidade de um túmulo de pedra.


Hoje a montanha está quase oca, mas alguns milhares de mineiros ainda reviram sua carcaça atrás de zinco, chumbo, estanho e, com sorte, alguma migalha de prata. Começam a trabalhar por volta dos dez anos de idade e dificilmente sobrevivem além dos trinta e cinco. As companhias que monopolizam o extrativismo não fornecem engenheiros, maquinário adequado ou equipamento de segurança e, no caso de os trabalhadores conseguirem desviar dos desabamentos, acidentes, explosões e bolsões de gases venenosos, ainda assim o corpo não resiste por muito tempo ao desgaste da função. Desbravam o subterrâneo movidos à base da coragem nascida da necessidade, bem como de folhas de coca fermentadas com saliva na bochecha e altas doses de álcool etílico 96%, com os quais também fazem oferendas para Pachamama e El Tío — o deus-diabo protetor dos mineiros.

El Tio, o protetor dos mineiros
El Tio, o protetor dos mineiros

A cidade que encheu os cofres e adornou as coroas da Europa colonial é hoje uma das regiões mais pobres de um dos países mais pobres da américa do sul. Entre outras cositas más, sustenta-se, aos trancos e barrancos do influxo turístico. Viajantes do mundo inteiro vêm à Potosí para passear entre as paredes de pedra que guardam memórias e cicatrizes do século dourado (além de algumas das melhores empanadas do país). A arquitetura colonial, a natureza, as termas de águas borbulhantes e o preço barato dos hostels são atraem legiões de mochileiros. Mas a atração principal, é claro, são as ruínas da montanha. Por um valor bastante módico, é possível comprar a sensação romantizada de um trabalho hiper-precarizado, vestir um macacão surrado, capacete com lanterna, botas de plástico e adentrar as entranhas da montanha.

É claro que a experiência de aventurar-se pelo terceiro mundo não seria completa sem duas coisas: souvenirs e algum sentimento de elevação espiritual em relação ao restante da humanidade.


O primeiro item é de fácil obtenção pouco antes da atração principal, quando a excursão faz uma parada no mercado dos mineiros. Espremendo-se entre o amontoado de barracas de lona e proletários bolivianos tomando café em pé antes da labuta, os turistas podem comprar cigarros, sapatos usados, chaveirinhos, ferramentas e, negociando-se direitinho, até um bom pedaço de dinamite. É comum que se aproveite para comprar também algumas folhas de coca, charutos e álcool etílico como um “regalito” para os mineiros que se dispuserem a parar seu trabalho para dar depoimentos, posar para fotografias e avivar a autenticidade da excursão.


Quanto ao segundo item — a tal da sensação “elevação espiritual e humanística” —, sendo um conceito mais abstrato, pode ser obtida de diversas maneiras, que podem ir desde a simples comunhão com a potência da paisagem andina até a tentativa levemente arrogante de apreensão do mundo que se faz ao escrever crônicas críticas e diários de viagem descaradamente antropologizantes. Mas (creio eu) nenhum método de pseudo-ascensão turística é mais representativa do destino de lugares como Potosí quanto a filantropia instantânea e instagramável.


Quando eu e meu irmão visitamos a montanha, estava junto conosco um grupo de meia dúzia de europeus. Não viajavam juntos, tinham sotaques, idades e interesses diferentes mas, de alguma maneira, eram compatriotas. Irmanavam-se, ao menos, no tão afamado fardo do homem branco. Agrupados nos bancos da frente do ônibus, comentavam o último referendo presidencial boliviano, ressaltando os benefícios que o país desfrutaria com uma maior abertura ao globalismo extrativista neo-liberal. No mercado, circulavam entre as pessoas como se estivessem em um museu, simultaneamente perplexos e maravilhados com a autenticidade rústica da miséria. Um casal distribuiu algumas notas para as crianças mais fotogenicamente pobres, pedindo em troca apenas uma selfie para amolecer o coração dos seus seguidores do instagram. Os europeus olhavam as pessoas ao seu redor e pareciam sentir que tinham ali uma obrigação moral — fosse em compensação ou em louvor — pelos feitos de seus antepassados. Inspirados então pela musa da filantropia, tiveram uma ideia brilhante para aplacar os males daquele povo. Decidiram comprar um pacote com três (03) cadernos escolares para presentear as pobres crianças que trabalham nas minas. Obviamente, por razões plásticas e jurídicas, os turistas apenas passam pelas rotas de mineradores adultos, ficando as câmeras e vistas sensíveis protegidas do choque do trabalho infantil, mas isso não foi um problema para os nobilíssimos desbravadores do velho mundo, que se satisfizeram em entregar os três cadernos para o nosso guia, sob a promessa solene de que o tesouro que lhes confiavam seria devidamente repassado às pequenas mãozinhas calejadas de labor. Tiraram fotografias e ficaram satisfeitos. Sabiam, é claro, que as crianças que trabalhavam ali não tinham tempo de frequentar a escola. Sabiam também, é claro, que mesmo que estudassem, os três cadernos não poderiam ser divididos entre as centenas de crianças semi-analfabetas que extraem os minérios de que são feitos os chips dos celulares com que os europeus tiravam suas fotos. Mas isso é de menos, preocupações de gente materialista. O importante não é o valor, e sim o gesto — e é daí que vem a tal elevação humanístico-espiritual que desafoga o fardo do homem branco e faz pagar-se o preço da passagem e o desconforto da viagem. Afinal, uma consciência limpa vale un Potosí.



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