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TEXTOS

  • Foto do escritorPlínio Zuni

Uma História pra quem tem estômago

Noite de sexta, tinha tudo pra dar certo. Dia produtivo, figurino na estica e tinha um encontro pra dali a pouco. Vinha eu então pela rua, ensaiando tranquilamente o xaveco na cabeça, quando me deparei com o cheiro irresistível de gordura pingando na brasa. Nunca me esquecerei desse acontecimento em meu intestino tão fatigado: tinha um churrasquinho no meio do caminho.

— B’a noite, moça. Me vê um de carne, faz favor?

— Carne acabou, filho. Esse aqui é coração de boi, prove pra cê vê que delícia.

— Coraçãozão, hein, tia!

— É pra dar força no amor!

— Opa, manda aquele molho de alho então que já é!


Peguei meu afrodisíaco e segui pro chamego, satisfeito com meus dois corações. Um deles um tanto quanto fibroso, é bem verdade, pra não falar no excesso de gordura, aparência meio maltratada, além de procedência e destino bastante duvidosos... Mas tudo se disfarça com cachaça e molho de alho.


Tinha tudo pra dar certo.


Chegando no ponto de ônibus, comecei a sentir uma fermentação. A respiração ficou difícil, tinha alguma coisa empurrando meus rins pra dentro das costelas. Suspirei com a mão sobre o plexo solar, no meio do caminho entre os dois corações que agora coabitavam animosamente meu corpo. Por sorte, do outro lado da avenida havia uma farmácia. Comprei um luftal genérico, pedi um copo d’água e mandei vinte gotas pra dentro.


Instantaneamente o placebo já me fazia sentir leve e rejuvenescido.


Entrei no ônibus e comecei a sentir o remédio fazer efeito. Minha avó dizia que se arde, é porque funciona. Cara, você não imagina como ardia… Quando chegou no meu ponto, tinha uma panela de pressão apitando na minha barriga. Encostei a mão na parede, olhei pro fundo da minha alma e pensei: merda.


Tudo bem, eu disse, tudo bem, é o remédio trabalhando. No pain no gain. Só preciso andar uns quarteirões, dar uma lubrificada nas engrenagens, respirar o ar puro dessa avenida movimentada enquanto meu corpo expulsa esse ar profano de dentro de mim. Vai dar tudo certo, eu disse. Relaxa e confia.


Mandei uma mensagem dizendo que ia atrasar um pouco, ela disse que tudo bem, tinha uns amigos por lá e ainda ia passar no mercado pra comprar mais cerveja, e eu pensei que é isso aí, sem drama, daqui a pouco eu vou estar tinindo e a gente vai estar rindo disso tudo, hahaha, como é triste ser ingênuo.


Então saí andando à esmo, respirando fundo, inflando e esvaziando a barriga com cuidado, me concentrando pra harmonizar mente e esfíncter. Infelizmente, Dalailama com prisão de ventre é só mais um cagão, e a cada passo que eu dava, mais grávido ficava. Despontou uma fisgada aguda na virilha e eu me torci no passinho do romano urrando um uuuuui tão doído que já me dói de novo só de lembrar.


Foi quando me dei conta de que eu não fazia ideia de como era o lugar pra onde eu estava indo, e portanto não sabia a distância entre o banheiro e a sala. E se o banheiro tivesse aquelas portas de treliça, quase tão frágeis quanto a masculinidade padrão? Eu não podia correr o risco de libertar lá o leviatã que me devorava por dentro. Afinal, como é que você vai na casa de alguém, faz uma brutalidade dessas no banheiro dela e depois ainda tem a pachorra de querer dar uns amassos como se nada tivesse acontecido? Não, sem chance, minha mãe não me criou pra isso. Quando consegui abrir os olhos, decidi que precisava tomar uma atitude mais drástica. Vi ao longe um mercado e decidi que let’s bring the big guns.


Te falar que, se tem uma droga que eu consumo com muita parcimônia e receio, é coca-cola. Mas tempos desesperados pedem medidas desesperadas. Entrei no mercado na fissura, vasculhei os corredores mas não achei uma geladeira de refrigerante. Só tinha coca quente. Suspirei. No pain no gain. Na fila do único caixa, um casal de velhinhos tentava ar-du-a-men-te pagar as compras, mas o talão de cheques estava dando um baita olé neles. Uma onda de dor gongou no meu saco, tive um leve ataque de pânico e saí correndo.

Saí do mercado tropicando pé, catando cavaco e achando que ia morrer, mas uma lufada de ar noturno com escapamento de caminhão queimando óleo me trouxe de volta à realidade. Refeito do susto, avistei uma biboca simpática do outro lado da avenida e decidi que ali seria um bom lugar para o meu expurgo.


Pedi finalmente o diacho da coca, sentei no balcão e aproveitei pra mandar outra mensagem pra a moça. Eu estava a dois quarteirões da casa dela, mas não tinha a menor condição. Não bastasse, meu celular estava com 7% de bateria. Abri então a mochila e descobri que, como todo castigo pra trouxa é pouco, eu tinha esquecido o carregador em casa. Pois que então eu disse pra mim mesmo: ô merda.


Terminei minha lata de desinfetante gaseificado, tomei coragem e fui pro banheiro. Naquele cubículo azulejado eu descobri um novo significado pra a palavra frustração. Mais de trinta minutos passados desde o luftal e nem sombra de peido dera as caras por aquelas bandas. Tentei todos os alongamentos possíveis de serem executados por um cara constipado agonizando numa privada: torci, puxei, dobrei repuxei, retorci, fiquei de pé e dei uns pulinhos, mas só consegui irritar o alien mais ainda. Tentei uma massagem, mas rasgava muito pior. Desesperado, esguichei luftal direto na garganta. Mandei uma mensagem pro broto dizendo que eu queria morrer.


De repente, fui tomado por um pensamento idiota: aquilo devia ser apendicite. Só podia. Não era possível que um simples pum fosse a causa de tamanha barbárie. Fiz o teste do toque mas, como não deu nada, concluí que eu é que devia estava fazendo errado, tinha que ser, porque aquela porra era um apêndice supurado que ia me matar sim E PONTO FINAL!


Arrisquei gastar mais um pouco da parca bateria pra procurar no google como autodiagnosticar apendicite. Vi que eu estava certo sobre estar errado e me senti duas vezes burro, o que me distraiu por um minuto do parasita gasoso corroendo minhas entranhas. Me animei a vestir as calças e encarar o mundo lá fora. Imaginei que o rapaz da lanchonete devia estar intrigado sobre os vinte e tantos minutos que passei no banheiro, então já saí me justificando:


— Cara, comi um espeto que me zuô le-gal, taqueopariu mano, não lembro de quando foi que eu senti tanta dor na vida, cé loko…

Silêncio grave. Ele olhou pra mim, eu olhei pra ele, eu olhei pro outro cliente no balcão, o outro cliente olhou pra mim e eu vi que o rapaz estava justamente entregando um espetinho de frango pra o outro cliente que, por um minuto, me pareceu confuso porém agradecido, mas quem sabe só estivesse bêbado ou flertando comigo, difícil dizer naquele contexto.

— Hã… tipo… um espeto na rua… mais cedo, não aqui… coração de boi, já comeu?… eh… quanto eu devo?


Saí do lugar um pouco constrangido, mas sejamos sinceros, o que é um peido pra quem… não, espera… não, nesse caso acho que não. Enfim.


Saí do lugar, mas não consegui ir muito longe. Andei dez metros e desabei na parede de uma casa. Eu simplesmente não podia mais carregar aquilo comigo, era ele ou eu. Decidi que se não ia por bem, ia por mal. Eu ia vomitar aquele demônio. Me acheguei da borda da rua, curvei a cabeça pedindo a benção da sarjeta  —  acho que é assim que nascem os deuses modernos  —  e meti o fura-bolo goela abaixo. Tossia e grasnava aquele barulho asqueroso de ganso headbanger mandando um gutural, mas não saía nada além do ridículo. Eu me esforcei muito mesmo, ao ponto que alguém na casa acendeu as luzes e foi pra janela ver quem seria o cretino a gorfar o frontispício da sua humilde porém limpinha residência.


Assustado, escorei na parede vizinha e lá fiquei. E fiquei. E fiquei. A dor me pegou de um jeito que eu simplesmente não conseguia mais me mexer. Fiquei lá, em plena Corifeu, empacado e me retorcendo. Quase que dava pra enxergar a casa da moça, o celular com 4% de bateria, meu intestino cheio de prego, as pernas bambas se fazendo de surdas. Respirei fundo e concluí: minha vida é uma merda.


Era hora de pôr os pés no chão. Mandei uma mensagem pedindo as mais sinceras desculpas pelo desarranjo, mas que sabe como é, são forças contra as quais é inútil rebelar-se. Ela me aconselhou a chamar um uber. Achei uma excelente ideia, cliquei no botãozinho do aplicativo e eis que meu celular deu seu irônico último suspiro.


Tinha tudo pra dar certo.


E então lá estava eu.


Sem romance.


Sem celular.


Paralisado e flatulento na beira da avenida, guinchando de dor, escondendo a mochila atrás da perna e torcendo pra não ser assaltado enquanto os exíguos restos da minha dignidade digestigladiavam-se sob a luz de um luar lindo porém inútil.


Eu só queria ir pra casa.


O ponto de ônibus estava a vinte metros, mas eu não conseguia chegar lá. Era ridículo! Eu via passar um ônibus atrás do outro, mas estava preso no meu próprio ponto, esperando um peido que me liberasse algum espaço de manobra. Respirei fundo, me concentrei e tentei lembrar de tudo o que havia aprendido naquelas três ou quatro aulas de yoga que frequentei em meados de 2012–2013. Alinhei os chakras, engoli o choro e, como se cruzasse um pântano de bosta flamejante, cheguei lá.


Subi a escadinha do ônibus com a velocidade de um processo por corrupção na justiça brasileira, e o motorista bocejou olhando diretamente nos meus olhos. Não tinha lugar no ônibus, o que não era problema, porque a perspectiva de me sentar parecia arriscada demais, não dava pra saber se eu conseguiria me levantar depois. Me acomodei em pé num canto, e o ônibus foi enchendo.


O sacolejo do busão funcionou como uma betoneira misturando a minha argamassa. Conforme sentia a mágica acontecer, me caiu uma ficha: o terrível clichê sobre o perigo de se conseguir aquilo se deseja. Súbito, eu me percebi em uma caixa de metal com as janelas quase todas fechadas, prestes a desencadear um Chernobyl sobre aquelas pobres pessoas inocentes voltando pra casa depois de um dia exaustivo de trabalho. Com a mão trêmula, senti o borbulhar no baixo ventre. Eu era uma bomba-relógio. Oh meu deus, o que foi que eu fiz??


Como se já pudessem de antemão sentir o cheiro da minha culpa, as duas senhorinhas sentadas na minha frente começaram a falar sobre deus. Uma delas tirou uma biblia da bolsa e as duas avózinhas muito fofinhas diziam que cristo isso, o padre aquilo, e esses jovens de hoje em dia que estão impossíveis, e você viu na televisão ontem, meniiiiina nem te conto, mas deus é mais, sangue de cristo tem poder e etecétara etecétara. O cara em pé atrás de mim enfiava o cotovelo nas minhas costelas toda vez que mandava mensagem no celular, e aquele vuco-vuco e mexe pra cá, aperta pra lá, e o motor tremendo no chão, e cada lombada uma emoção e ôôôô motorista tá transportando gado, é? e as avózinhas amém amém amém eu ali, carregando no ventre o rebento de satanás, me sentindo a menina do exorcista, só conseguia pensar que, bicho, se eu peidar em cima dessa carola o que é que jesus vai pensar de mim?


Lembrei de todos os filmes de super-herói em que o mocinho, de posse de um dispositivo termonuclear, pula no rio ou voa pro espaço sideral pra salvar a cidade da explosão. Era aquele o momento pra o qual eu havia me preparado todos esses anos assistindo dragon ball e lendo homem-aranha. Era chegada a hora e vez de plínio matraga. Dei sinal e dei no pinote empurrando geral. Sai da frente que eu tenho que salvar a sua vida, mano!


O ônibus parou e, no espaço imensurável do pulinho da escada pra a calçada, aconteceu. Um arroto: e o universo transbordou de mim.


Minha amiga de casa, vou te contar que eu arrotei querendo chorar. Aquilo não foi simples eructação, não senhor. Era um grito de liberdade! Eu era o simba rugindo na pedra do rei! Eu era a kate winslet de braços abertos na ponta do titanic! Eu era britiney careca quebrando um carro com o extintor de incêndio! Eu era livre, leve, dono do meu corpo, praticamente um comercial de absorvente! A cada arroto que urrava, mais eu me sentia uma bailarina fazendo um, dois, pliêêê, um, dois, pirueta, pliêêê, très jolie…


Meu arroto  —  meu nêmesis, meu everest  —  estava agora livre pra percorrer o mundo e espalhar a sua mensagem. Nos despedimos, e eu pude finalmente voltar pra casa sem medo de riscar um fósforo e explodir o prédio.


Terminei minha noite-que-tinha-tudo-pra-dar-certo tomando um chá digestivo feito pela roommate, deitado de perna aberta e abraçado com minha cachorra, com quem tenho intimidade suficiente para compartilhar certas sublimações sem maiores constrangimentos.


Adormeci meditando sobre o peso de um peido.

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