Quando comecei a escrever esse livro, sabia que só duas pessoas poderiam escrever o prefácio — o Yuri e a Nara. Foi uma escolha difícil. Não é que faltasse gente qualificada, outros profissionais do ramo, amigos generosos, leitores queridos... Mas é que o primeiro livro de um autor é quase como um filho, e por isso, mais do que um prefaciador, esta obra precisava de um padrinho e uma madrinha. Fiz uma boa escolha. E meu único arrependimento foi ter deixado passar o título que a Nara escolheu. É uma abertura brilhante, e muito mais bonita e generosa do que eu poderia esperar.
Segue então o:
𝗣𝗿𝗲𝗳á𝗰𝗶𝗼 𝗯𝗲𝗺 𝗺𝗲𝗻𝗼𝘀 𝗯𝗿𝗶𝗹𝗵𝗮𝗻𝘁𝗲 𝗾𝘂𝗲 𝗺𝗮𝗻𝗰𝗵𝗮 𝗱𝗲 ó𝗹𝗲𝗼
— 𝗽𝗼𝗿 𝗡𝗮𝗿𝗮 𝗟𝗮𝘀𝗲𝘃𝗶𝗰𝗶𝗼𝘂𝘀
"Palavras são invenções humanas. São tecnologias. Modificam e são modificadas pelo tempo, espaço, corpo. Nos enganamos atribuindo a elas uma imaterialidade – elas têm peso, estatura, osso, carne, sangue, músculo; riem, choram, resmungam, suspiram, entalam na garganta para depois, sem aviso, irromperem em vômito, em grito.
Quatro anos atrás, o autor deste livro me enviou um e-mail com o que ele dizia ser “a primeira cópia do segundo esboço desse que talvez venha a ser, quiçá, até que meio que se pá, um livro, quem sabe”. Este autor – a quem tenho a honra de chamar “meu amigo” – mal podia imaginar a fenda temporal em que estávamos entrando. Um tempo que parece suspenso, ao mesmo tempo em que sabemos, sem sombra de dúvida, que a areia na ampulheta nunca parou de escorrer. Só os deuses e as deusas sabem quantas cópias, esboços, versões esse tempo produziu.
Por mais que o ofício da escrita exija silêncio, uma boa dose de solidão, um certo afastamento do mundo, nosso autor aqui é gente como a gente: classe trabalhadora, com rabiscos de poemas misturados com os boletos alérgicos a literatura e com a abençoada carteira de vacinação – viva o SUS, para não perder o costume! –, a saúde mental abalada por essa experiência coletiva de sequestro que vivemos (nós, simultaneamente reféns e aqueles que devem pagar o resgate), minimamente restaurada, aqui e acolá, por vídeos de bichinhos fofos, a cachaça (“Todo mundo tem sua cachaça”, disse Drummond – não eu, longe de mim) e, com sorte, alguns amores tranquilos.
Pois esse escritor entrega, enfim, a “versão definitiva”, na forma deste livro que agora temos o prazer de ler. As aspas aqui são manifestação de uma convicção minha de que não há nada de definitivo, nem em literatura, nem em lugar nenhum, especialmente numa obra que é fruto e semente – nesta ordem – do seu tempo. Sei de antemão que essa versão é continuada, reescrita, reimaginada a cada leitura. Se, porém, eu posso influenciar de algum modo nessa leitura, quero convidar a quem lê que se imagine em um teatro e, por favor, desligue o celular (apenas uma metonímia de qualquer dispositivo supérfluo e com alta capacidade de nos distrair).
Nas encenações que leremos aqui, podemos espumar de raiva dos cidadãos-de-bem (também conhecidos como protofascistas); rir do poeta “iluminado” que retrata com a mais pura burrice e empáfia as mazelas sociais; sentir o chão sob nossos pés erodir e levar embora quem amamos – e o gosto amargo em nossa boca, ao final, nos lembra como a lógica de morte a que chamamos capitalismo nos impede de viver plenamente esses amores –; e, o mais bonito de tudo, podemos, de repente, acionar paraquedas coloridos – usando a metáfora preciosa de Ailton Krenak – para adiar o fim do mundo.
Parece pretensioso? Pois imagine você que Zuni nos oferece essa possibilidade da maneira mais humilde possível: com uma pomba. Sim, esse bichinho amaldiçoado, tantas vezes descrito como “rato com asas” (o rato, outro bichinho injustiçado), é, aqui, uma personagem da mais elevada estatura. E não, não estamos falando da pombinha branca das cantigas, muito menos do símbolo da paz ou da promessa de Deus. É aquela pomba na praça mais suja da cidade, com seus barulhinhos guturais e um pescoço inquieto. Acontece que, você pode não se lembrar, mas essa mesma pomba desprezada por todos é descendente de animais que viveram míseros 167 milhões de anos em nosso planeta esférico. Talvez ela saiba algo sobre o fim do mundo. Talvez seus superpoderes – a curiosidade e a empatia – sejam bons recursos ainda à nossa disposição em tempos apocalípticos. Talvez a narrativa, uma aliada tão antiga da nossa sobrevivência, possa, mais uma vez, adiá-lo."
Nara Lasevicious é uma educadora, comunista e leitora dedicada. Formou-se em letras [português] em 2014, e fez mestrado na área. Milita há muitos anos no movimento de cursinhos populares, e se arrisca a conversar sobre o colapso climático em curso com quem quiser ouvir. Produz ainda um podcast (afetuoso) sobre literatura e o que mais der na telha, o Crisálida de Ar. Tem uma gata chamada Midori, que a ama de um jeito problemático. Cantou Djavan para sua turminha do 2° ano do Fundamental, sem motivo nenhum.
Para conhecer melhor o trabalho da Nara, siga o Instagram do Crisálida de Ar
*O livro "Mais Brilhante que Mancha de Óleo Boiando no Córrego" foi publicado com apoio do edital PROAC, promovido pela Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo
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