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TEXTOS

  • Foto do escritorPlínio Zuni

Tudo passa sobre a terra

Passava apressado quando vi a cabeça do homem saindo do chão. Ele gritou pra mim, pedindo ajuda.

Tudo passa sobre a terra

Não sei o que é aquele desnível. Uma rampa íngreme de concreto, larga e comprida, com uma grade de ferro no fundo. Fica em uma praça entre as avenidas Jaguaré, Corifeu e Politécnica.

Me aproximei e vi o homem em uma cadeira de rodas. Não tinha uma das pernas, e a outra estava inchada e machucada. No declive havia roupas, sacolas, garrafas e embalagens de marmitas. Os braços estavam firmes, segurando a cadeira contra a gravidade.

Ele me pediu ajuda e eu não soube o que fazer.

Travei o passo. Gaguejei. Eram seis da tarde, começava a escurecer. Eu não enxergava bem o fundo da rampa, não sabia quem mais poderia estar lá. A praça é larga, mato alto. Tentei me convencer de que estava atrasado, mas isso era ridículo. Um homem numa cadeira de rodas me estendia a mão pedindo ajuda pra sair de um buraco, e o meu primeiro instinto foi pensar no celular, na mochila, em tudo o que os programas policiais que eu abomino me disseram que aconteceria se eu baixasse a guarda.

Olhei pros lados sem saber o que procurar. Ele me chamou mais uma vez. Então, desci e pedi desculpas.

"Porra, tô faz uma hora aqui pedindo ajuda, essa merda dessa roda tá quebrada."

O que responder? Devia papagaiar clichês hipócritas sobre como as pessoas são egoístas, medrosas, preconceituosas? Eu quase saí correndo também, e é difícil dizer se fiquei por solidariedade ou por alguma culpa militante egóica. Dizer pra aquele homem que, naquele lugar, naquela hora, naquele corpo, pedindo socorro, ele parece uma armadilha? Ou só falar que a vida é assim mesmo, liga não, tudo passa, se deus quiser as coisas vão melhorar?

Então, eu só pedi desculpas, mais uma e outra vez. Disse que sentia muito. Nem sei bem pelo quê, mas sentia. Parte por ele estar naquele lugar, naquela situação, e eu não. Outro tanto por eu ter hesitado, pensado tudo o que a gente luta tanto pra não pensar. Sentia muito por ter medo e por ter pelo que temer, e nessas horas a gente não sabe mais se sente pelo outro ou por nós mesmos. É foda.

Foi tudo coisa de um minuto. Ele agradeceu, foi seguir com a vida. Certamente tinha coisas mais importantes pra se preocupar.

Eu estava a caminho do CEU Jaguaré. Ia dar uma aula sobre Iracema. Detesto esse livro, mas sempre falo muito sobre ele. Meu plano era fazer uma leitura pós-colonial pra falar sobre as bases do nosso imaginário racista, particularmente contra populações nativas. Conversar com os alunos sobre como essas idéias surgem, se disseminam nos infectam nas partes mais elementares da nossa constituição pessoal. Sobre como uma imagem, um cânone, uma construção ideológica, tem o poder de cindir, apartar, desumanizar o outro e justificar convenientemente o nosso medo, raiva e insensibilidade.

Tive que parar no meio do caminho. Comprei um maço de cigarros. Estava em cima do horário, mas tudo bem.

Nunca me senti tão aliviado pela falta de público numa palestra.

Às vezes a gente só se sente um pedaço de merda.

Tudo bem, depois passa.

Curiosamente, é assim que o Alencar termina esse livro, poético porém detestável e daninho, como a merda do mundo real:

"Tudo passa sobre a terra".

Pra passar por essa terra, a gente tem que aprender a respirar fundo e repetir pra si mesmo que vai ficar tudo bem.

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