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TEXTOS

  • Plínio Zuni

Pseudo-ensaio do Inferno Astral





09 de junho de 2017


Nunca manjei muito de astrologia, mas gosto da ideia de inferno astral, talvez pelas mesmas razões que me fazem gostar de datas e marcos em geral.


O caso é que, por conta de causas e forças que me são desconhecidas, calhou de eu ter nascido já pré-destinado a me tornar um adepto adicto compulsivo da reclusão introspectiva — um tipo de mau hábito que geralmente acomete esses afortunados que padecem de literatices e demais inadequações sociais —, e datas como aniversários e feriados são álibis perfeitos, porque fornecem local e motivo pra minhas crises existenciais e perversões pseudo-artísticas.


Ficou um pouco confuso? Pois então me explico:


Veja bem… Quando usamos o nosso extraordinário poder de dar nome às coisas — esse dom de ser deus com que agraciou-se o gênero humano — para conceder forma e propósito para algo tão abstrato e convencional quanto uma data, ela passa a ser mais lugar do que tempo: a mesa atulhada de comida e parentes barulhentos na casa da avó; a cama onde você disse eu te amo pela primeira vez; uma feriado de chuva na praia; a pasta em que guardo as cartas que escrevo todos os anos naquela lua especial; o bar da galera; aquele banco de praça em que a gente disse adeus, um tempo bom que não tem mais volta. Certas datas são cômodos dentro de nós, repletos de estantes e malas, fotografias, ideias, projetos, e é bom que essas portas fiquem abertas apenas uma vez ao ano, porque garantem a visita e evitam a permanência.


De todas as salas no edifício do nosso calendário, frequentemente os aniversários são os mais caóticos. No espaço de um dia é preciso acomodar todo o balanço autoavaliativo da vida corrente, angústias sobre o que ainda não foi, o que deveria ter sido e o que já não vai mais ser, listas e planejamentos, os cinco passos de aceitação do modelo Kübler-Ross, a lágrima escorrida naquela mensagem especial de parabéns que chegou quando você menos esperava, vários abraços, talvez uma festinha surpresa e certamente infindáveis litros de vodka. Convenhamos, é muita coisa pra espremer num natalício só. Assim, me parece tremendamente conveniente a ideia de diluir esse turbilhão emocional nos trinta dias anteriores, de modo que, ao final desse calvário, se tenha realmente algo pelo que comemorar.


No começo do inferno astral deste ano, fazendo meu primeiro balanço de perdas e ganhos entre recomeços acadêmicos, fracassos amorosos, angústias políticas e desesperos profissionais, gastei algum tempo pensando sobre essa coisa estranha que é o ofício de escrever. Foi então que me dei conta de uma covardia antiga: nunca, nesses quase trinta e dois anos batendo na porta da minha consciência como um Seu Barriga aburguesadamente cobrando aluguel, eu tinha arriscado mandar textos para concursos.


Parece bem besta falando assim, eu sei, e talvez seja mesmo, mas foi o caso, fazer o quê, e daí em diante fiquei obcecado com isso. Não apenas com a ideia de mandar um conto para um desses matadouros da crítica a que nós nos submetemos por um pouco de glória e uns trocados, mas principalmente no porquê de eu nunca ter tentado.


Decidi então começar a tomar atitudes práticas. Encontrar concursos e revistas é fácil, já escolher um texto é bem mais difícil. Deveria reciclar um antigo ou escrever uma coisa nova? Durante esse período, usei praticamente todo o tempo livre abrindo pastas velhas, revisando, desmarcando compromissos, me esgueirando pelos cantos com pilhas de papéis, esquecendo de responder mensagens e atravessando madrugadas e fins de semana em anotações e esboços novos. No fim, fiquei entre três possibilidades e pedi pra três pessoas me darem uma opinião. Quando ia enviar os textos pra esses amigos, vi que precisava dar mais uma lustrada, e passei a noite em claro fazendo isso. Eles votaram, eu revisei mais uma vez e fui dormir. O dia seguinte era a data limite de envio. Me sentei no computador às sete da manhã pra mandar o conto, quando cometi o erro de relê-lo uma última vez e, sob a influência de um dia inteiramente novo, enxerguei todas as arestas que não estavam lá na noite anterior. O prazo de envio era às 17h, e terminei de reescrever às 16:30h. Quando teclei Enter, doeu.


Parece uma coisa besta, mas o caso é que escrever é estender-se, cindir o tempo, levantar um puxadinho dentro de si e acomodar lá um monte gente. Cada vez que você visita esses lugares e pessoas, eles tem coisas novas pra dizer, mudam de opinião, mostram objetos que cataram aleatoriamente na rua, refinam os modos e os falares na prática da gaveta. É reconfortante desenrolar indefinidamente a incompletude de uma história, porque assim não nos sentimos tão sós na nossa mais inegável angústia: a impossibilidade humana de estar simultaneamente vivo e completo.


Mandar um conto para um concurso ou, ainda pior, publicar um livro, me parecia um tipo de assassinato, porque significava dar um final definitivo naquela página, naquelas pessoas, naquela história. Visitá-las apenas como se visita túmulos e bilhetes guardados. Imaginar é um jeito de existir em paralelo, um biviver sem matéria, mas com vivência ainda assim. A sensação de dar essa fração da sua vida por finalizada às vezes parece um pouco com dizer adeus, fechar uma porta, morrer de levinho. Soa dramático, eu sei, mas não é ruim nem triste. No fim das contas, todo novo arrepio também é um tipo de alívio, e acho que temos essa sensação com todo tipo de porta que se fecha — ou que se abre, olhando daqui é difícil dizer a diferença, se é que há.


No fim, todo the end é só o susto dos pontos finais que escancaram as possibilidades da página em branco.


Então, no balanço geral, o saldo desse inferno astral até que foi bastante positivo.


Talvez por isso eu goste tanto de datas especiais. Elas dão bons começos de capítulo.




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