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TEXTOS

  • Plínio Zuni

Pombas, Caranguejos e o tempo das obras de arte





Conhece aquela do artista que postergou o edital?

Quem contou primeiro foi o Ítalo Calvino:


“Entre muitas virtudes, Chuang-Tsê tinha a de ser hábil no desenho. O rei lhe pediu que desenhasse um caranguejo. Chuang-Tsê respondeu que precisava de cinco anos e uma casa com doze criados. Passaram-se cinco anos, e o desenho ainda não estava começado. "Preciso de outros cinco anos", disse Chuang-Tsê. O rei os concedeu. Passados dez anos, Chuang-Tsê tomou do pincel e, num instante, com um único gesto, desenhou um caranguejo, o caranguejo mais perfeito que jamais se tinha visto.”


A fábula é profunda, e levanta muitas perguntas. Quanto tempo é necessário pra desenhar um caranguejo? A espera também faz parte da obra? E, afinal, seria Chuang-Tsê um asceta, um filósofo ou apenas mais um picareta mamando nas tetas do imperador? Não sei, não sei… Por sorte, o Ricardo Piglia destrinchou essa fábula em um belíssimo ensaio chamado “Novas teses sobre o conto”. É neste ensaio que eu tenho encontrado, nestes tempos nebulosos, o conforto da compreensão artística.


O lance é que estou devendo um livro. E, já que não tenho uma casa com doze criados, eu acordo e vou dormir pensando nisso todos os dias desde que ganhei o edital do PROAC.


No ensaio que mencionei, Ricardo Piglia defende que o núcleo básico da fábula de Chuang-Tsê está no tempo e nas condições materiais de trabalho, e recorre a Marx pra lembrar da dificuldade de medir o tempo necessário para produzir uma obra de arte e, consequentemente, determinar o seu valor social.


No meu caso, os prazos do edital entram em conflito com a noção de tempo pandêmico, no qual os dias se condensam numa massa de tédio, angústia e espera.


Com relação às condições materiais, pra além de todas as dificuldades financeiras e do caos trabalhista, do espaço exíguo, das bibliotecas fechadas, da saúde comprometida e falta de perspectiva, é preciso também levar em conta que a matéria-prima da poesia é o diálogo banal, a convivência cotidiana, o caminhar pelas ruas, o ponto de ônibus, a experiência da vida. Escrever só de memória é como tentar sentir o sabor da comida através de uma fotografia.


Mas acho que a parte mais torturante dessa equação é questionar o tal do “valor social” da obra nesta era apocalíptica. Afinal, por mais que falemos sobre o poder da literatura contra a barbárie, é difícil evitar a sensação de que fazer ficção perdeu o sentido diante do absurdo que estampa as manchetes jornalísticas. Mais do que isso, é terrível o peso de impregnar uma obra de um “valor social” que justifique a sua existência, como se um verso, uma metáfora ou um personagem fossem capazes (ou tivessem a obrigação moral) de combater o fascismo.


Esse embate entre a conclusão de uma obra e a impossibilidade de salvação num universo desesperançado e sem perspectiva de mudanças é explicitado através de um exercício de imaginação, quando o colega argentino se pergunta como Kafka escreveria esta fábula. A conclusão é que, na versão hipoteticamente kafkiana, os prazos do edital se estenderiam infinitamente, e Chuang-Tsê protelaria a conclusão até o dia de sua morte, quando finalmente entregaria ao imperador o desenho perfeito do caranguejo. A obra estaria pronta há anos, mas o artista envelhece sem nunca ter coragem de mostrar o resultado final. A conclusão é que, para todos os outros, o quadro estava perfeito, mas para o artista, uma obra é parte indissociável de si, e portanto só estaria terminada quando o artista para de respirar.


Ao longo dos últimos meses, eu reescrevi todos os contos do livro dezenas de vezes. Alguns desses textos cresceram tanto que se tornaram projetos à parte, esboços de romances, trechos de futuros artigos, páginas de diários, áudios, vídeos, calhamaços de notas amassadas e muitas, muitas, muitas horas de terapia. Ainda assim, a sensação é de não ter escrito nenhuma linha que valesse a pena publicar.


Piglia diz que “A experiência de errar e desviar-se num relato se baseia na secreta aspiração de uma história que não tenha fim; uma utopia de ordem fora do tempo, na qual os fatos se sucedem, previsíveis, intermináveis e sempre renovados”, e que “os finais são formas de encontrar sentido na experiência” Talvez por isso os últimos anos tenham sido tão avessos ao fechamento da obra. Por mais intensa que seja a experiência de atravessar o apocalipse, o estado de confinamento e depressão coletiva nos impede de dar sentido à esta experiência. Quando se vive no caos absoluto, é irresistível a tentação de se refugiar na utopia de uma história sem fim.


(Me pergunto qual seria o contexto político-social da China quando Chuang-Tsê tentava desenhar seu caranguejo…)


Porém, Piglia também afirma que o final de uma narrativa “põe em primeiro plano os problemas da expectativa” e “nos defronta com a presença de quem espera o relato”. E por mais que eu quisesse passar a vida toda tecendo em palavras uma chave de ouro que desse um desfecho pra esse mundo escroto…, é preciso cumprir os prazos e preencher os relatórios da prestação de contas do edital. E por mais que a equipe do PROAC seja extremamente gentil e compreensiva (e eles realmente são), a burocracia é uma entidade inexorável. Afinal, como bem diz o ensaísta, “para evitar essa linguagem impossível (que é a linguagem que os poetas utilizam), na vida se praticam os finais estabelecidos. Os horários em que nos movemos cortam o fluxo da experiência, definem as durações permitidas”.


Mas, mesmo que fosse possível driblar a papelada, eu ainda estaria preso no paradoxo de kafka. Porque o problema fundamental dos pontos finais é a expectativa do artista sobre quem vai ler o relato. E talvez seja por isso que eu esteja escrevendo esse texto às duas da manhã, meio como quem pede desculpas de antemão ao leitor hipotético sem nem saber o porquê…


(Foda, né? Será neurose de artista ou sequela de brasil?)


Enfim, de qualquer forma, a questão é que todo projeto pede um fechamento. E é difícil encerrar uma obra em tempos de barbárie, mas também é bonito e necessário, porque, como diz o Piglia:


“A arte é uma atividade impossível do ponto de vista social, porque seu tempo é outro, e sempre se demora muito (ou muito pouco) pra ‘fazer’ uma obra. [...] Todas as histórias do mundo são tecidas com as tramas da nossa própria vida. Remotas, obscuras, são mundos paralelos, vidas possíveis, laboratórios onde se experimenta com as paixões pessoais. Os relatos nos defrontam com o caráter inexorável do fim, mas também com a felicidade e com a luz pura da forma [...] Com certeza, essa marca no tempo, esse revés, é a diferença entre a literatura e a vida. Projetar-se pra além do fim, para perceber o sentido, é algo impossível de se conseguir, salvo sob a forma da arte”.


Eu não sei ao certo quanto tempo é necessário pra desenhar o caranguejo perfeito, mas o meu córrego já escorre pelas páginas, uma pomba está pousada sobre a capa, o ano tá acabando, a galera está vacinada, e nos próximos dias o meu livro vai chegar na sua estante.


Ou seja…


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