Me pergunto todo dia sobre o porquê da poesia.
Ontem um amigo leu dois poemas meus e comentou: "você tem raiva, né?" E eu realmente tenho. Meus poemas falam de raiva, cansaço, dor. Falam sobre política, poder, violência. Mesmo os mais subjetivos, bonitos ou delicados são quase sempre um misto de veneno e sarcasmo. E a verdade é que talvez seja impossível escapar desses matizes de miséria nos tempos em que vivemos. É preciso ter raiva pra entender e mudar as coisas, e essa é certamente uma das razões da poesia.
Mas aí é preciso perguntar: como é que ficam os poemas de amor?
Pois que, dia desses, estava lendo A Poesia como Arte Insurgente, do Ferlinghetti, e esbarrei nessa pedra:
"Que tempos são esses
Em que escrever um poema de amor
É quase um crime
Porque ele contém
Tantos silêncios
Sobre tantos horrores…"
Esse poema me abriu. É triste (e meio besta, confesso) sentir que falar de amor desmobilize a fúria que esses tempos pedem. Mas acontece, às vezes, de a gente ser meio besta mesmo. Ferlinghettti me lembrou que o amor é preciso para além do fatalismo.
O Amor — como ensinam as pedras e também o Platão — não é fuga nem válvula de escape. É canal de impossíveis. A paz escavada no atrito da seda. Uma admiração que atravessa os limites da matéria e da mesquinhez, despertando o desejo de ser cada vez maior e melhor.
Platão falava em "thea mania" , uma busca insaciável pelo êxtase e plenitude absolutos como caminho de acesso ao divino, fonte de sabedoria e talvez o melhor motor que há pra alguém se elevar. É bem bonito, e eu concordo, mas ultimamente tenho pensado que Amor é ainda muito mais.
Eu e o Bakunin gostamos de pensar no amor como a conciliação entre comunhão e liberdade absolutas, tomada de consciência de si e do outro, e caminho de ação efetiva para construção de uma nova realidade. Quando se apaixonou, Mikhael escreveu:
“Continuo a ser eu próprio, como antes, inimigo declarado da realidade existente, só que com uma diferença: eu parei de ser um teórico, eu venci, enfim, em mim, a metafísica e a filosofia, e entreguei-me inteiramente, com toda a minha alma, ao mundo prático, ao mundo dos fatos reais. Acredite em mim, amigo, a vida é bela; agora tenho pleno direito de dizer isto porque parei há muito tempo de olhá-la através das construções teóricas e de conhecê-la somente em fantasia. (...) Amar é querer a liberdade, a completa independência do outro. O primeiro ato do verdadeiro amor é a emancipação completa de quem se ama.. (...) Esta é a profissão da minha fé política, social e religiosa, aqui está o sentido íntimo, não só dos meus atos e das minhas tendências políticas, mas também, tanto quanto me é possível, da minha existência particular e individual. (...) A verdade não é uma teoria, mas sim um fato. A vida é a comunidade de seres livres e independentes. É a santa unidade do amor que brota das profundidades misteriosas e infinitas da liberdade individual.”
Assim, acho que, se tenho procurado a poesia, talvez não seja só por ranço do jornalismo novelístico e tretas das redes sociais ou por qualquer desilusão com os rumos da humanidade. Talvez eu esteja pensando poesia porque, há precisamente um ano, eu e Juliana nos beijamos pela primeira vez.
Eu escrevo pra entender o que vejo. Mas pelo espelho daqueles olhos verdes, vejo com mais clareza que no papel. No corpo que nasce do nosso abraço, há muito mais músculos para mover o impossível. De mãos dadas, tudo é mais vasto, e, assim como Bakunin disse sobre a Liberdade, também o Amor de Juliana eleva ao infinito minha capacidade de amar e transformar o mundo.
O ser que ama precisa de uma nova linguagem que enlace o momentâneo e o metafísico numa utopia tão real quanto aquele primeiro beijo na porta do bar. Uma linguagem que mova moinhos, na qual todas as palavras traduzam um tom de Liberdade: como o manifesto revolucionário inscrito no sorriso da minha companheira.
Um ano desde aquela noite no Sucesso's, e cada dia é um novo verso que decifra e espanta um pouco mais os medos do amanhã. E quando escrevo sobre o desejo de incendiar o mundo, é naquele beijo que busco o fogo. Se penso poesia, é porque a língua dela habita minha boca.
Juliana me elucida todo dia o porquê da poesia em tempos de barbárie.
Feliz primeiro beijo, meu amor. Você me ensina a poesia do inexprimível.
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