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TEXTOS

  • Foto do escritorPlínio Zuni

O rosto atrás da Máscara da Morte

Gosto muito de Allan Poe, e acho que um dos melhores contos que ele já escreveu é "A Máscara da Morte Escarlate". Esse conto genial, além de ser um tratado sobre a estetica do romantismo gótico, carrega também auma crítica social fuderosa lacradora atualíssima em tempos como os que enfrentamos agora.

A Máscara da Morte Escarlate - Odilon Redon
A Máscara da Morte Escarlate - Odilon Redon

O conto se passa na Europa medieval, durante a baixa idade média, quando um reino é assolado por uma epidemia terrível, ainda mais assustadora do que o corona:

“Por muito tempo a “Morte Escarlate” devastara o país. Jamais pestilência alguma fora tão mortífera ou tão terrível. O sangue era seu avatar e seu sinal – a vermelhidão e o horror do sangue. [...]. As manchas vermelhas no corpo, em particular no rosto da vítima, estigmatizavam-na, isolando-a da compaixão e da solidariedade de seus semelhantes”.

Enquanto os cadáveres do povo se amontoavam nas ruas, o governante local – um sujeito bizarríssimo e altamente escroto conhecido apenas como "Príncipe Próspero" – decide estocar toneladas de comida e vinho (ainda não tinha papel higiênico na barbárica europa cristã medieval), chama seus amigos aristocratas mais topzera pra ficarem seguros e confortáveis, tranca os portões e deixa o povo morrer lá fora. Mas era preciso também entreter os playboy, que se entediavam fácil, além de que, convenhamos, quem tá com o seu bunker garantido não curte ficar pensando em tragédia, genocídio campesino, colapso econômico, essas coisas bad vibes... Então o Príncipe Próspero decide dar um mega baile de máscaras pra distrair as socialites.

A rave do príncipe acontece em sete salões muito doidos e coloridos, que representam as sete idades do ser humano (atravessar os sete salões corresponde a percorrer um ciclo de vida completo), assim como sete pecados capitais (gula, vaidade, ira, cobiça, preguiça, luxúria e avareza, ou seja, o rico starter pack completo). Rola muita música, coxinha de ossobuco, open bar de ecstasy, provavelmente até uma fonte que jorra catuaba... Mas o destaque principal são as máscaras e fantasias dos convidados, que transitam entre os limites do sensual, perverso e grotesco, resultando numa coisa mais ou menos parecida com o que seria se o Hieronymus Bosch dirigisse um clipe da Lady Gaga em um clube bdsm. Basicamente, a ideia é celebrar os prazeres da vida debochando da morte, enquanto a peste devasta o povo desprotegido e abandonado do lado de fora dos muros do castelo.

Eis que, como em todo bom conto de terror, precisamente à meia noite, após o gigantesco relógio de ébano do salão principal calar a multidão com as suas doze badaladas ensurdecedoras, surge um doidão tenebroso no meio do rolê. O sujeito misterioso atrai a atenção de todos os convidados, causando revolta, náusea, terror, repulsa, quebrando totalmente o clima da orgia. O motivo do nojinho dos faria limers é a fantasia do invasor. O sujeito misterioso vestia uma mortalha manchada de sangue, e a sua máscara era a perfeita imagem dos cadáveres vitimados pela tão temida Morte Escarlate.

Nas palavras do Poe, "a personagem em questão havia transcendido à extravagância de um Herodes e ultrapassado os amplos limites do decoro que o Príncipe estabelecera. [...] Até entre os depravados, para quem a vida e a morte são igualmente um brinquedo, há coisas com as quais não se pode brincar." Ou seja, tudo bem tripudiar dos fodidos lá fora enchendo o rabo de chandon e caviar, mas porra, precisa mesmo esfregar essa hipocrisia na nossa cara, parça? Descansa, militante, maior downer aê…

Obviamente que o Príncipe Próspero ficou putinho, mandou parar a música, estufou aquele peito de pombo anabolizado e baixou lá dando um piti mo-nu-men-tal:

"Quem ousa a nos insultar com esta ironia blasfema? Segurem-no e desmascarem-no, para que saibamos a quem iremos enforcar, nos altos das ameias, ao amanhecer!".

Chamou a galera porque não se garante sozinho no soco, né? Muito valente… Mas, claro, foi só o invasor dar um passinho pra frente que todo mundo se caga e corre pros cantos do salão. O nosso herói estraga-festa, então, aproveita pra dar umas voltas ao redor da galera, tocando o terror na playboyzada, e depois segue de boa do primeiro ao sétimo salão, caminhando like a boss.

Envergonhado por ter sido peidão na frente dos seus brothers, o Príncipe Próspero decide pegar um punhal e correr ensandecido atrás do invasor. Mas, quando ele chega no último salão, o sujeito misterioso, que estava de costas, se vira e encara o nosso rei do camarote, que dá um grito e desaba no chão, instantaneamente morto. O resto dos aristocratas toma coragem de agarrar o desconhecido e tiram a máscara dele, só pra descobrir que TCHA-RÃM: não tinha ninguém embaixo da máscara! Então, instantaneamente todos os nobres estrebucham e morrem, sofrendo menos do que deveriam, na minha humilde opinião.

Esse é, claro, um conto sobre a fragilidade humana diante da morte, bem como a ingenuidade e arrogância de quem acredita que seu dinheiro, status social ou amizades poderosas ou qualquer outro pistolão as coloca acima da inevitabilidade das forças da natureza. Porém, como nos tem mostrado a nossa atual epidemia, esse conto é também sobre o comportamento padrão das elites. Eles dançam enquanto o povo morre não só porque precisem cuidar da saúde mental durante uma quarentena, mas sim porque o sofrimento do populacho lhes excita. Eles escolhem se fantasiar como monstros, debochar da desgraça alheia, carnavalizar a Morte Escarlate, porque são verdadeiramente sádicos. Durante o baile de máscaras, você pode apostar que eles deviam estar discutindo as vantagens da praga pra limpar o feudo desses campesinos "diferenciados" e as oportunidades comerciais pós-apocalípticas. E, no final do conto, a morte deles também nos dá alívio e prazer, porque tem aquele gostinho de vingança…

Hoje eu reli esse conto pensando no dono da riachuelo, no véio da havan, nos donos das empresas de telemarketing e naquela desembargadora cretina que disse estar adorando o coronavírus porque melhorou o trânsito da cidade. Reli esse conto pensando em todos os empresários que fazem roleta-russa com a saúde dos trabalhadores porque “a economia não pode parar”, bem como em todos os patrõezinhos que sacrificam a vida das empregadas domésticas porque são incapazes de limpar a própria bunda sozinhos. Reli pensando no silas malafaia, no edir macedo e em todos os estelionatários da fé que conduzem seu rebanho pra o matadouro. Também pensei muito nesses namastê quânticos que romantizam a epidemia com clichês de espiritualidade goodvibes e mindset empreendedor, como se a morte de milhares de pessoas fosse só mais um capítulo do livro bosta de auto-ajuda que eles escrevem no instagram. Mas acima de tudo, li esse conto pensando na nossa versão pornochanchada do príncipe próspero, aquele boçal que veste a faixa presidencial e que rasteja além dos limites do pérfido e do grotesco, tripudiando da morte do povo, tentando transformar a epidemia que assola o planeta em uma “fantasia”, uma “histeria coletiva”, enquanto se esconde atrás dos muros de sua fortaleza de mentiras, crente de ser intocável.

Na adaptação cinematográfica de 1964, a grande revelação final é que, por baixo da máscara, a Morte Escarlate tem o rosto do infame príncipe. Porque, no fim das contas, a verdadeira praga que assola o mundo são os nobres dançando debochadamente em castelos de ouro enquanto o povo morre desamparado nas ruas.

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