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TEXTOS

  • Foto do escritorPlínio Zuni

Não é um vírus o que nos mata

Um vírus é algo muito pequeno para acabar conosco.

O triunfo da Morte - Pieter Bruegel
O triunfo da Morte - Pieter Bruegel

Morreremos, ao invés, de obscurantismo. Caminhamos de braços abertos matadouro adentro, guiados pelos mercadores da fé, terraplanistas, negacionistas da ciência, filósofos de youtube, coachs quânticos, políticos que atacam as escolas e universidades. Morreremos em nome da manipulação da inocência e fragilidade alheias, bem como do orgulho em sermos ignorantes.

Morreremos de macheza e medo. Seremos abatidos pela masculinidade frágil que se refugia na violência, nas armas, no autoritarismo, que tenta resolver os problemas na base do grito, do tapa, do tiro. Morreremos por causa de programas policiais sensacionalistas, do pseudojornalismo que respinga sangue e patrocina a politica da guerra. Nos condenamos a uma sociedade do assassínio por causa dessa covardia que mitifica trogloditas e elege bolsonaros.

Morreremos, sobretudo, de capitalismo. Seremos sacrificados para que bilionários não deixem de se banquetear. Para que oligopólios farmacêuticos e companhias de planos de saúde continuem a lucrar com o nosso sofrimento. Para que o barril do petróleo se valorize. Para que se privatizem todos os direitos. Para que as máquinas não parem. A Economia, como qualquer deus-vulcão faminto, requer holocaustos.

Certamente morreremos de desigualdade. Apenas na cidade de São Paulo, nos últimos quatro anos, a população de rua já aumentou 53%, chegando a 24 mil pessoas desabrigadas e desamparadas pelo estado. Confinados em um país que precisa se pôr em quarentena, milhares de pessoas vivem paradoxalmente excluídas da sociedade e, ao mesmo tempo, incapazes do agora tão necessário isolamento social. É impossível controlar epidemias sem antes haver políticas habitacionais, saneamento básico e equidade econômica. Além disso, morreremos de chauvinismo aristocrata, de modo que os patrões, mesmo em meio a uma epidemia, não precisem se dar ao trabalho de esterilizar suas próprias casas ou fazer sua própria comida.

Morreremos porque esta pandemia é apenas uma das primeiras de muitas que virão. Doenças milenares aguardam pacientemente o desgelo das calotas polares para se libertar e nos devorar. A cada gota de agrotóxico que engolimos, mais cânceres cultivamos em nossos já debilitados corpos. Em nome do "progresso", envenenamos nossa água, terra e ar, e esperamos não sermos nós envenenados depois?

Morremos de apatia, desistência, conformismo. Morrendo de isolamento, individualismo, arrogância, egoísmo. Morremos por meia dúzia de luxos e vaidades. Morremos por ignorância, charlatanismo e idolatria. Morremos pela ilusão de poder que esconde um servilismo patético. Nós, que vivemos no chão, morremos como vermes para que alguns poucos porcos ricos vivam como reis.

Ou talvez simplesmente morramos porque, lá no fundo, nos odiemos tanto e tão profundamente que esse seja realmente nosso objetivo. Isso, em parte, explicaria os nossos fetiches religiosos, econômicos e culturais terem se estruturado tanto em torno da culpa, da dor, da punição, do sofrimento.

Esse vírus se combate com álcool em gel, repouso e chá de gengibre. O que nos mata, no entanto, pede medidas muito mais drásticas.

Do contrário, pelo menos os golfinhos voltarão a nadar nos canais de Veneza.

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