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TEXTOS

  • Foto do escritorPlínio Zuni

Uma mulher gritava na rua

Na minha rua, um homem segurava uma mulher pelo braço e a prendia contra a parede enquanto ela gritava por socorro.

Na minha rua, uma mulher gritava

A parede em questão pertence a uma academia de musculação e jiu-jitsu, e dentro dela um grupo de marombeiros faixas-preta ignorava tranquilamente os gritos da mulher enquanto suavam pra parecer mais machos. No bar, na marcenaria e na loja de equipamentos de segurança, todos se esforçavam para ignorar uma mulher que gritava por socorro em via pública, a duzentos metros do quartel da polícia militar, às 10 horas de uma manhã de sol.

Gritei da sacada do meu quarto, ao que ele me respondeu que aquela era a mulher dele e me fez um aceno com a mão, como um colega avisando que está tudo em ordem, aquilo era só uma mulher desobediente, mas que ele já ia dar um jeito. Gritei novamente ameaçando descer, então ele largou e a mulher foi embora.

Eles são meus vizinhos, moram na caçamba de um caminhão abandonado na minha rua, junto com mais uma meia dúzia de pessoas itinerantes. Posso vê-los de cima enquanto saio pra fumar entre um trabalho e outro. Já os vi abraçados na garoa, lutando pra se aquecer em cima de um colchão molhado. De madrugada ouço a voz dele, bêbado, angustiado, mas quase sempre cantando.

Pensando agora, com a cabeça fria, me pergunto o que vai acontecer com essa mulher mais tarde, quando o marido, além de tudo, quiser descontar a raiva de ter sido humilhado por um homem que dorme numa cama confortável e tem o poder de ligar para a polícia e ser chamado de Senhor. E então penso que talvez eu pudesse ter descido e conversado ao invés de simplesmente imposto minha autoridade de homem branco. Mas o que dizer? Eu, que nunca lhes perguntei os nomes, ofereci um prato de comida ou cobertor seco, deveria chegar de supetão iluminando-os com meu discurso libertador acadêmico-militante?

Depois, tomando um café quente na mesma sacada, me lembrei de um sábado de inverno nesta mesma rua. Eram outro homem e outra mulher sobre um pedaço de papelão na calçada. Ela gritava, ele a segurava e a vizinhança assistia de braços cruzados como se fosse um espetáculo. Ele a prendia porque não queria que ela fosse pra a cracolândia, e ela gritava que ele não era seu dono. Podia ser amor, mas é possível que fosse apenas posse, e pode ser que no crack ela buscasse a fuga dele, de si mesma, do mundo ou de ninguém. É difícil dizer quem é que tem razão, se é que há razão possível nestes tempos de barbárie.

A mulher pedia socorro e ninguém parecia se importar, mas alguns talvez só não soubessem o que fazer. Não justifica o silêncio, a falta de empatia, os braços cruzados, mas o que fazer quando você sabe que ela provavelmente vai voltar essa noite, seja por amor ou necessidade? E o que fazer por esse homem? E sobre todas as outras pessoas que dormem na caçamba desse caminhão e nas calçadas da minha rua, e na rua de baixo, e na de cima, e na cracolândia que fica a quatro quadras daqui, e nas centenas de milhares de colchonetes e papelões abrigando homens e mulheres embaixo das janelas de todos nós? Talvez essas pessoas simplesmente sintam que não vale a pena, que é inútil se importar, como quem atira bitucas na rua porque o chão já está imundo. Afinal, de que é que adianta o esforço quando tudo já está fodido?

Diante de tamanha selvageria, é difícil não acreditar na lei da selva, cada um por si e deus contra todos, e fechar os olhos parece ser uma questão de sobrevivência. É compreensível. Talvez as pessoas só precisem se lembrar que um dos principais fatores que garantiu a sobrevivência deste pequeno e frágil ramo de primatas inteligentes na selva foi a capacidade de se importar, e que a empatia também traz dor porque a alteridade é o que nos torna conscientes. É triste não ter poder para consertar o mundo, porque isso nos lembra que não somos os deuses que gostaríamos de ser, mas isso não é motivo pra abrir mão do que nos faz humanos.

Acho que já é alguma coisa.

Espero que eles fiquem bem.

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