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TEXTOS

  • Foto do escritorPlínio Zuni

Gente que prefere bicho do que gente

Foi denunciada na grande mídia, na semana passada, uma pastelaria no Rio de Janeiro que mantinha funcionários em regime de trabalho escravo sob tortura e usava carne de cachorro pra rechear pastel. A denúncia de trabalho escravo não é nova, já é de conhecimento do MPT desde 2013, mas ganhou repercussão midiática apenas dois anos depois, quando foram descobertos os corpos dos cães congelados junto às pequenas celas onde trabalhadores chineses eram encarcerados como cães em um canil.

Gente que prefere bicho do que gente

Os cães congelados no freezer nos indignam mais do que os bois nas mesmas condições, por razões que os ativistas de direitos animais cansam de repetir. Cães são mais fofos, buscam o jornal, abanam o rabo quando chegamos em casa. Nós não damos nomes às vacas, e isso faz com que o cão seja o melhor amigo do homem, enquanto o ruminante seja só um colega distante, desses que cumprimentamos na rua só com um aceno de cabeça e pra quem a gente não dá os parabéns quando o Facebook avisa sobre o aniversário, e aí não tem muito problema quando sabemos que foram na marcha do impeachment, sofreram um acidente ou viraram hambúrguer. Não nos causa empatia o animal que não nos lambe as mãos. Eu, que não sou um ativista dos direitos animais e adoro churrasco e bacon, não posso ignorar que é um argumento excelente, e me faz pensar no porquê de tanta gente se chocar os cães no frigorífico e não dar a mínima para os chineses escravizados.


Questão de prioridades

Fiz uma rápida pesquisa no google pra verificar como a mídia abordou o caso e como os leitores responderam. Meu método foi abrir as primeiras sessenta notícias que o google apresentou com as palavras-chave “pastelaria”, “trabalho escravo” e “carne de cachorro”, para analisar os títulos que os jornalistas dão para as matérias e as reações nos comentarios.

Que carne vende mais?

Primeiro, os títulos das notícias: das SESSENTA matérias em jornais e blogs, apenas DEZESSEIS destacavam em suas chamadas tanto a questão do trabalho escravo quanto a da carne de cachorro; onze falavam apenas do trabalho escravo; e as restantes falavam em suas chamadas apenas sobre a questão dos cães. A diferença entre quem priorizou a morte dos cães ao trabalho escravo dos chineses, portanto, é avassaladora. A conclusão é evidente: o sofrimento de cães vende mais do que o sofrimento de pessoas.

A barbárie dos comentários

Em seguida, parti para a leitura das caixas de comentários das matérias. A leitura foi um processo doloroso e amargo. Não fiz uma contagem exata, porque eram muitos, repetitivos e em grande parte incompreensíveis, mas o resultado foi bastante claro, apesar de ter me surpreendido aqui e ali.


Em primeiro lugar, a constatação óbvia: um número irrisório de comentaristas atentaram pra os crimes de cárcere privado, trabalho escravo e tortura a que foram submetidos os imigrantes chineses.


Em segundo lugar ficaram os comentários de pessoas falando sobre os maus tratos com cães, a crueldade em comer um animal doméstico, alguns poucos fazendo uma reflexão sobre ser contra o consumo de cães e a favor do consumo de vacas, e muita, mas muuuuita gente mesmo contando histórias pessoais sobre seus cães e sobre como os animais são melhores do que os humanos por razões em que me aprofundarei mais abaixo.


Mas os comentários campeões de repetição, ênfase e frases sem vírgulas escritas em caps lock foram, disparado, os discursos de ódio. Faço uma pequena síntese dos tópicos mais recorrentes: “tem que expulsar esses chinas do Brasil”; “povo sujo”; “odeio chines, japones e coreano”; “o atendimento deles é péssimo”; “eles querem dominar o mundo”; “comunista comia criança, agora come cachorro”; “eles não pagam impostos”; “não confio em chinês”; “o Brasil é casa da mãe joana, deixa entrar qualquer um”; “tem que fazer pastel de chinês”; “tem que matar o chinês a pauladas pra ele saber como se sente o cachorro”; “tenho nojo de chinês”; “um cachorro vale mais que mil chineses”, “eles estão no Brasil então tem que falar português”; “na china eles comem cachorro porque não tem carne”; “selvagens”; “culpa da Dilma” e “pastel de flango”. Teve muito “pastel de flango”.


As fotografias

Gente que prefere bicho do que gente

Ao longo deste pequeno tour pela império da decadência midiática, nos deparamos com outra questão: o tratamento dado à sensibilidade visual dos leitores. Embora não fosse a regra, diversas matérias continham avisos sobre imagens fortes e chocantes, sendo que em alguns casos o leitor precisaria clicar em um link específico no caso de ter certeza de querer se submeter ao trauma do impacto visual. Não se tratavam de fotos das marcas de tortura nos chineses escravizados, e sim da imagem de um cão congelado. Não quero aqui desmerecer quem se chocaria com essa imagem (ainda que ela não seja lá muito diferente das imagens publicitárias de frangos congelados em folhetos de supermercado), mas é um indicativo das prioridades sobre quem merece um tratamento mais humano.

Um dia depois da denúncia dos pastéis de cachorro, veio à público o caso de Verônica, uma travesti brutalmente espancada e humilhada por policiais. Nas muitas matérias que trataram do assunto, de blogs a grandes jornais, constam fotos de Verônica algemada, com o rosto deformado e coberto de sangue e hematomas, os cabelos cortados, nua da cintura pra cima. Nenhum aviso sobre a violência das imagens ou link separado para quem se choca com a visão de um ser humano desfigurado. A única “concessão” à sensibilidade dos leitores feita por alguns sites foi uma tarja preta ou desfoque sobre os seios de Verônica. O rosto destruído, a violência policial, a dor e humilhação, o machismo e a transfobia não chocam o cidadão de bem tanto quanto o cadáver congelado de um cão.


Prefiro bicho que gente

A questão aqui não é desmerecer a empatia pelo sofrimento de animais. É extremamente louvável que pessoas se preocupem com o destino de seres inocentes de outras espécies, e junto à consciência de direitos animais costuma caminhar a conscientização pela preservação ecológica, que deveria ser uma preocupação prioritária aos de bom senso em tempos de aquecimento global, volume morto e falta de água até pra o starbucks dos micareteiros paulistanos revoltados. A luta pelos direitos animais é justa e necessária, e admiro quem se dedica à causa. A questão não é negar o direito de se importar com os cães abatidos pra se tornar carne, e sim a pouca importância que se dá aos homens e mulheres que passam pelo moedor. Acima de tudo, é essencial investigar as razões dessas prioridades.


Os bons ativistas pelos direitos dos animais são aqueles que contam com um projeto político realmente libertário, levando em conta os fatores humanos, econômicos e sociais envolvidos nas cadeias de exploração. Essas pessoas merecem respeito e admiração.

Infelizmente, uma parcela considerável das pessoas que se considera “amante dos animais” é, na verdade, apenas amante de si mesmo e, frequentemente, uns fascistinhas odiadores do restante da humanidade. É muito comum que as falas e textos destes “pet lovers” venham acompanhados pelo desprezo pelos seres humanos e causas humanitárias, um escudo de bom mocismo que tenta camuflar racismo, elitismo e egoísmo, ou, na melhor das hipóteses, ingenuidade e desejo de fuga da realidade social.


Primeiro, pensemos na falha lógica no argumento mais comum e ingênuo destas pessoas: a ideia de que bichos são melhores do que gente.


Dizer que “cachorros são melhores do que homens porque cachorros não mentem, não julgam e não abandonam” faz tanto sentido quanto dizer que seres humanos são melhores do que cães porque cães não fazem poesia e não constroem naves espaciais, ou que bicicletas são melhores do que cavalos porque eu nunca pisei em um cocô de bicicleta. Cachorros não fazem o mal e o bem que humanos fazem porque cachorros não tem essa capacidade. Você pode preferir a companhia de cachorros do que de humanos (na maior parte do tempo eu também prefiro), pode preferir ler poesia do que jogar um graveto no parque, e pode preferir pedalar do que cavalgar, mas não faz sentido comparar Lassie com Baudelaire ou o intestino de um cavalo com a correia de uma bicicleta.

Gente que prefere bicho do que gente
Raphael Salimena

Outro argumento é o de que “animais precisam da nossa proteção pra sobreviver, enquanto pessoas podem trabalhar e ser donas de si”. De fato, a vida de um cão abandonado em uma cidade grande é difícil e injusta quando comparada à do poodle que nasce em casa de socialite. Da mesma forma, a vida de uma criança que nasce na sarjeta é extremamente injusta quando comparada à do mesmo poodle que nasce em casa de socialite. Crianças abandonadas, moradores de rua e trabalhadores escravos, infelizmente precisam de muito mais proteção do que um cão. À elas não são garantidos os direitos ou condições para que trabalhem, tenham autonomia ou mesmo possam sonhar em serem donas de si. Outras minorias marginalizadas têm maior autonomia sobre suas vidas, mas discriminações de classe, gênero, sexualidade e cor são impostas sobre essas pessoas à força, se sobrepõe à sua autonomia, e todos fazemos parte desse sistema de imposições, seja do lado opressor ou do lado oprimido. Quem é oprimido luta por sua autonomia, e quem é opressor tem uma responsabilidade social e ética pelos privilégios adquiridos às custas da autonomia de quem é oprimido, e isso não pode ser simplesmente ignorado sob o pretexto de que “eu desprezo todos os seres humanos porque eles não são gatinhos e golfinhos”. Assim, ilusão de que as pessoas não são dignas da mesma compaixão que um cão porque elas “estão nessas condições porque querem” não apenas é, na melhor das hipóteses, uma “ingenuidade”, como também é combustível para a indiferença social que condena as pessoas à marginalidade.


Todos os bichos são iguais (mas uns são mais iguais do que outros)

A desumanização de humanos é compensada pela humanização de animais, e assim as pessoas não se sentem mal com a banalização da violência e o decorrente individualismo, tão crescente nestes tempos de paranóia e xenofobia. É mais fácil separar as coisas em “humano mal, bicho bom”, principalmente quando podemos vestir nossos animais como humanos que não reclamam, são gratos e obedientes, e tratar como animais os humanos que não dão a patinha e nem fingem de morto.


Um dos frutos da desumanização é o preconceito — no caso aqui, a sinofobia. Não é incomum ouvirmos por aí piadas sobre como todo chinês é igual, sobre produção em série de bebês chineses, como se eles fossem feitos nas mesmas fábricas sem alma em que costuram cachorrinhos fofos de pelúcia para alegrar nossas criancinhas fofas e rosadas. Na nossa cultura de padronizações estereotipadas, todo chinês se chama ping xing ming, e todos querem comprar o mundo ou vender “pastel de flango”. Daí pra os comentários racistas e xenófobos feitos nas matérias que citei, desejando a tortura e morte dos trabalhadores chineses escravizados, é um pulo.


Por isso é tão fácil que alguns dos amantes de animais não tenham também empatia por negros amarrados em postes, travestis espancadas pela polícia, encarceramento de crianças, machismo, racismo e homofobia. Não tem problema atacar direitos humanos se você só gosta mesmo é de bicho, e as pessoas que lucram com a desumanização de seres humanos sabem e se aproveitam disso.


É questão de prioridades. Sentimos ânsia ao pensar em comer um pastel feito de cachorro, mas não ao pensar em comer um pastel feito por escravos. Um escravo chinês, boliviano, negro ou nordestino não abana o rabo quando te vê, e seus filhotes não dão bons videos de youtube pra amolecer nosso coração endurecido pelas notícias de trabalho escravo jornal e pelo bife sangrento com que nos refestelamos.

Gente que prefere bicho do que gente

É claro que essa não é a regra geral, e, novamente, a luta pelos direitos animais é justa e válida, merece respeito e admiração, e muitos ativistas pelos direitos animais são também pessoas preocupadas com outras causas sociais, pois isso é coerente com quem segue uma filosofia de respeito e justiça. Entretanto, é um problema enorme quando a luta pelos direitos animais serve pra menosprezar direitos humanos, pedir que testes farmacológicos sejam feitos em criminosos, cercear liberdades religiosas (sim, estou falando com você que ataca o sacrifício ritual de religiões afro e não tá nem aí pro churrasco e cachorro-quente vendidos na quermesse da paróquia), ou pra fazer você se sentir confortável com seu egoísmo.

O cão é o melhor amigo do homem, e um escravo na pastelaria vale tanto quanto um boi no espeto, uma criança na cadeia ou um pobre no caixão.

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