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  • Foto do escritorPlínio Zuni

"Estupro culposo" desde o Barroco — o caso Artemísia Gentileschi



"Yael e Sísera" — Artemísia Gentileschi

No ano de 1611, quando tinha apenas dezessete anos, a jovem e brilhante Artemísia Gentileschi foi brutalmente estuprada por Agostino Tassi — um célebre pintor que, na época, já havia sido acusado de estuprar suas duas cunhadas e planejar o assassinato da esposa. O caso foi levado ao tribunal pelo pai de Artemísia no ano seguinte.

O julgamento durou oito meses, durante os quais foram invertidos os papéis de vítima e agressor. Artemísia, por ser mulher, foi acusada de "libidinosidade", como se fosse responsável por seduzir seu estuprador. O tribunal entrevistou vizinhos, parentes e frequentadores da residência da família Gentileschi, na tentativa de provar que Artemísia não era virgem e "se encontrava" com outros homens. Os testemunhos provaram que ela era uma "mulher decente", mas isso não foi o bastante, e Artemísia foi obrigada a passar por duas sessões de exames ginecológicos extremamente invasivos (nunca ficou claro o que se pretendia provar com esses exames).

Por fim, Artemísia foi submetida à prova das Sibilas. O processo era simples: de joelhos, a depoente deveria colocar as mãos abertas uma contra a outra, em forma forma de oração. Os torturadores enrolavam os dedos da vítima com um tipo de barbante grosso ou fio de couro, que deveria ser apertado com um torniquete. Artemísia, então, era obrigada a repetir as acusações, sempre olhando nos olhos de seu estuprador, e a cada vez que gritava “è vero, è vero, è vero, è vero, tutto quello che ho detto ( é verdade tudo o que eu disse)", os guardas apertavam mais o torniquete, que podia ser apertado até quebrar os dedos da depoente.

Após as longas sessões de tortura e humilhação, o tribunal se convenceu de que Agostino era mesmo um estuprador. A sentença, entretanto, foi puramente cênica. Agostino foi condenado ao exílio, mas, graças à suas conexões políticas, a sentença foi suspensa quatro meses depois, e ele voltou a viver sua vida normalmente. Apenas mais um clássico caso de "estupro culposo".

Depois do caso, o pai de Artemísia arranjou um novo casamento, na tentativa de mitigar o dano à reputação da filha, mas de pouco adiantou. Artemísia precisou mudar e cidade logo em seguida, uma vez que persistiam as acusações de imoralidade feitas pelo povo futriqueiro.

Artemísia se tornou uma das maiores pintoras do barroco europeu tendo sido convidada a participar de alguns dos principais círculos intelectuais e aristocráticos de então. Frequentou a corte britânica, viajou por boa parte da Europa e recebeu encomendas das famílias mais ricas da aristocracia italiana. Ainda assim, seu trabalho era frequentemente desvalorizado sob a acusação de ser uma "donna de facili costumi".

Além de sua técnica magistral, obra de Artemísia ficou conhecida pela temática da violência patriarcal contra as mulheres. Entre sua vastíssima produção, dois quadros ganham destaque. O mais famoso é "Judith decapitando Holofernes", que é considerado uma das obras do "ciclo de vingança" da autora, e alega-se que o Holofernes decapitado seria um retrato do estuprador Agostino Tassi.

O segundo quadro, pintado um ano antes do estupro, é "Suzana e os Anciãos". Este quadro é inspirado em um episódio bíblico bastante conhecido. É a história da bela Suzana, que teria sido flagrada tomando banho nos jardins de sua casa por dois velhos, que decidem chantageá-la. Os velhos ameaça Suzana, dizendo que, a menos que ela transasse com os dois, eles a acusariam de estar cometendo adultério com outro homem — crime cuja sentença era a morte por apedrejamento. Suzana se recusa a ceder à chantagem, e por isso é levada pelos velhos ao tribunal popular. O povo, obviamente, acredita nos dois velhos, e Suzana é condenada à morte, até que o jovem Daniel aparece acompanhado por um anjo, interroga os dois velhos e prova a inocência da vítima. A moral desta história é que a palavra da mulher não tem valor nenhum, e é sempre preciso que outro homem a defenda para que o povo acredite. E é importante destacar aqui a ocupação dos dois velhos que chantageiam Suzane: ambos eram juízes.


Suzana e os anciãos - Artemísia Gentileschi

Essa cena bíblica foi retratada por diversos pintores ao longo da história, quase sempre por pintores homens. Em praticamente todos os casos, Suzane é retratada de forma dúbia, como se tentasse seduzir os velhos juízes, de modo que, novamente, a vítima se tornava o objeto de acusação.

Apesar de seu talento e sucesso, Artemísia Gentileschi foi praticamente apagada da história da arte durante três séculos. Foi apenas na década de 1970 que a crítica de arte feminista conseguiu reabilitá-la. Ainda assim, suas obras são frequentemente atribuídas a outros pintores homens. Hoje, Artemísia ainda é mais conhecida por conta das violências que sofreu do que por sua obra.

Esse caso aconteceu no século XVII, durante o auge da Inquisição Católica, muito antes do surgimento oficial dos movimentos feministas e discussões sobre direitos humanos. O caso de Mariana Ferrer e do estuprador André de Camargo Aranha só provam que, de lá pra cá, nada mudou. A ética de nossos juízes continua praticamente igual a dos que tentaram chantagear e abusar sexualmente de Suzana, os tribunais continuam utilizando a tortura como método de extrair confissões das vítimas, e o povo prossegue sedento por novas oportunidades de apedrejamento. Acima de tudo, as mulheres que sofrem violências misóginas continuam sendo vistas como as criminosas, obrigadas a provar sua inocência apenas pra viver marcadas pelo resto da vida, enquanto os estupradores seguem livres. Tudo isso nos leva a pensar que, talvez, a única solução pra lidar com vermes como André de Camargo Aranha e Agostino Tassi seja mesmo seguir o exemplo de Judith.



Judith decapitando Holofernes - Artemísia Gentileschi
 

* Bônus: segue aqui um trecho de uma aula que dei sobre a arte do Barroco, com a análise de algumas obras dessa artista magistral:




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