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TEXTOS

  • Foto do escritorPlínio Zuni

Erosão


arte: Oswaldo Guayasamín


Com todo cuidado pra não fazer barulho, ela abre uma fresta da janela. A penugem de luz que prenuncia o dia se alia à chama do fogão, azulando de leve a habitação de um só cômodo. Pendura a toalha molhada no beiral e vai passar o café. Devagarinho, derrama um filete de água fervente no filtro, assistindo às pequenas bolhas que emergem do charco escuro enquanto erodem as paredes de pó. Lembrava de casa.


O pó fofo desaba fácil no aconchego da fervura e traz um quê da cozinha perdida da avó: o rosnado súbito da geladeira vermelha... um santo virado no copo... confidências escolhendo feijão... o pano de prato bordado à mão pendurado no ombro da velha cheirando à alfazema e fumo de corda, já ralando ainda antes que as galinhas acordassem, e sempre cantando tão bonito que às vezes parecia até que se podia ser feliz.


A água que arrastou o morro era gelada. Um rio de barro lambendo os blocos pelados e o barraco balançando contra correnteza que nem bote sem remo num redemoinho de borra de café.


Encheu a chaleira outra vez e a recolocou no fogo. Acendeu um cigarro e se deu um segundo de sossego assistindo o sono da filha. O colchão tão fino no chão, e mesmo assim o corpinho quase sumia entre o leito e o lençol. A menina dormia pesado um sonho que devia ser leve, a julgar pela mansidão larga do suspiro ondulando as costelas magras. Era bom vê-la assim, tranquila. Verdade que é uma criança quieta, obediente, não dá trabalho nem reclama de nada, mas "calada" é diferente de tranquila. Ela também não corre, brinca pouco, nunca desprega os olhos dos pés, e às vezes isso pesa mais no peito de uma mãe do que qualquer malcriação. A professora mandou outro bilhete essa semana, dizendo que a menina é esperta, que tem potencial, mas que seria bom procurar um psicólogo... Tão boazinha, tão bobinha, a professorinha... E por acaso pobre lá tem tempo ou dinheiro sobrando pra ficar deitado em sofá de médico de doido? Aff, minha filha, quem me dera... E a menina ainda agora inventou de se enfiar na igreja, o que até parece bom, já que pelo menos não fica por aí à toa, pensando na vida, que nem cabrita solta. E, além de tudo, ainda chora toda vez que chove, a coitada... Bestagem! A gente sabe que agora chuva já não é pra susto, o prédio é firme e esse chão em que ela dorme é duro que nem a cara dessa cidade. Desabamento aqui, só com ordem do juiz. Mas é só o céu zangar que a boba já deságua se engasgando de soluço. Imagina, com tanta coisa pra se se preocupar…


O dia já ia nascer e ainda faltava encher mais duas garrafas térmicas, cortar os bolos e ajeitar copos e guardanapos na caixa de plástico, que ainda por cima está com a porcaria dessa alça quebrada, e depois amarrar tudo no carrinho, vestir o avental manchado mesmo, porque ontem acabou a luz e não deu tempo de lavar, e no meio do caminho ainda vai ter que passar na casa da dona Ana pra pegar os salgados frescos, e sabe como ficou dona Ana depois que o marido fugiu, vai querer ficar futricando sobre a vida, a tv, a politica, o filho da vizinha..., e depois ainda precisa subir toda a avenida, arrastando as rodinhas de plástico pela calçada esburacada, desviando de bosta de cachorro, de gente, andando a galope pra chegar no seu ponto a tempo de pegar o primeiro movimento na entrada do terminal antes das lanchonetes abrirem. Comprou o carrinho de alumínio com a indenização que a prefeitura deu pra cobrir o desabamento, e precisava desaguar toda a mercadoria rápido pra escapar dos fiscais da prefeitura. Não que estivesse reclamando, deusalivre ser à toa, cabeça vazia oficina do diabo, quem cedo madruga sempre alcança, a gente não pode ficar parado. Tinha teto, trabalho, saúde e não podia reclamar. Nada de bom cai do céu.


Lembrava que naquela noite só queria ver a novela, mas o barulho da chuva abafava o drama na televisão. A tempestade metralhava as telhas de zinco, ribombando tão alto que mal deu pra ouvir o estrondo da árvore que tombou contra o muro. Um raio explodiu um poste, e o breu engoliu o bairro. A correnteza ia adensando conforme o córrego transbordava, engrossando o caldo de lama com sacos de lixo, galhos, pneus, ratos, vivos e mortos. A lama pesada batia nos blocos como coturnos arrombando portas. Foi quando caiu a primeira parede.


No dia seguinte havia tratores e fitas preto-amarelas de isolamento, e os agentes da defesa civil explicaram que naquele verão havia chovido mais do que o previsto. Um vereador, comovido com as perdas da comunidade, distribuiu camisetas de campanha para agasalhar os despossuídos e fez um discurso firme sobre a negligência do prefeito. O prefeito não pode vir pessoalmente, mas declarou na coletiva de imprensa que sentia um tremendo pesar por tão trágica fatalidade natural, ainda que aquela fosse uma área ocupada de forma criminosa por pessoas irregulares, mas que já estavam sendo firmadas parcerias com o setor privado para encontrar uma solução final para aqueles pobres infortúnios. Os repórteres queriam contar a emocionante história de superação da mulher que passou onze horas embaixo dos escombros abraçada com a filha mais velha. E quando os vizinhos disseram que foi um milagre! Deus te salvou! Aleluia misericórdia do Todo Poderoso Senhor Jesus Cristo que colocou aquela bendita geladeira no caminho pra segurar a viga de concreto que deveria ter dado fim ao seu sofrimento..., ela só conseguia pensar na lápide que era a cabeceira da cama da avó, fincada entre os escombros no topo do túmulo de lama.


Emborcou o café como se fosse cachaça. Estava forte e amargo, bem como ela gostava, mas infelizmente precisava colocar mais água. Detestava servir café fraco, parecia desfeita, coisa de patrão, mas o preço do pó está um assalto. Colocou metade do conteúdo na segunda garrafa, acrescentou mais água e se serviu de outra dose e mais um cigarro.


Nem havia amanhecido e já estava exausta. Sentiu uma pontada de enxaqueca. Não conseguia tirar da cabeça uma música que a filha aprendeu no culto. A peste cantarolava o maldito louvor o dia inteiro, depois da escola, fazendo faxina, enquanto lavava a louça, antes do jantar, na hora de dormir, era insuportável! Precisava achar uma ocupação pra essa garota. Detestava essa gente que fazia corpo mole olhando pro céu.


Acendeu a luz, mas a criança insistia no deboche de dormir tranquila. Ainda faltava cortar o bolo, separar o troco, pegar a touca branca, arrumar o carrinho, e o sol já ia subir e o povo já ia pro trem e o preço de viver cada vez pior e, como desgraça pouca é bobagem, suspeitava que as nuvens estavam se ajuntando, planejando uma enxurrada pra mais tarde naquela noite, e ela provavelmente vai ter que ficar acordada madrugada adentro por causa da menina, essa ingrata, que chora e se desespera sem saber a sorte que tem de ainda poder chorar e soluçar e rezar até desmaiar e depois acordar pornta pra começar tudo de novo como se o pesadelo não fosse real! Criança insolente, não agradece a benção de ainda conseguir sentir medo de morrer! Parece até que não aprendeu nada naquela noite... Quando o pulmãozinho do bebê encheu de lama, e não adiantou nada bombeiro nem trator nem repórter nem o sangue de jesus nem merda de indenização nenhuma, e era tão pequeno o caixãozinho e já não tá dando mais, não dá, e ela não sabe a sorte que tem, a desgraçada, não sabe...

meu anjinho... ninguém sabe é de nada...


Ameaçou desabar. Sentiu dentro de si o adensar das nuvens, acinzentado o horizonte de um dia que nem bem raiava ainda. Ouviu o vento raivoso que vinha há tempos uivando no fundo do ventre a varrer-lhe os remendos das fissuras. Balançou sob o prenúncio da borrasca no peito. Queria ceder. Queria trovejar. Queria que a angústia inundasse a cidade e afogasse toda essa gente sorrindo insolências como se fosse feliz! Queria se afogar...

Mas não podia.

Não tinha tempo.


Represou-se num suspiro fundo. Bebeu um último gole lento de café e apagou o cigarro. Sabia que o sol logo ia aparecer. Enxugou os olhos no pano de prato, ajeitou as coisas no carrinho e vestiu o avental. Já com a mão na maçaneta, olhou pra trás, voltou para a janela e recolheu as toalhas. Nessa cidade, nunca dá pra saber quando o tempo vai virar.


Antes de sair, deixou dois pedaços de bolo em cima da mesa.


"Madre y niña" — Oswaldo Guayasamín

 

*Este conto foi premiado pelo concurso "Despertar Literário", promovido pela cidade de Suzano. Ele também faz parte do livro "Mais brilhante que mancha de óleo boiando no córrego", vencedor do edital de criação literária PROAC, da Secretaria Estadual da Cultura de São Paulo, e será publicado no segundo semestre de 2020.





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