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  • Foto do escritorPlínio Zuni

Dona Ana e o chocopau pascoal


Dona Ana e o chocopau pascoal

O ano era 1999, e era época de páscoa — mais uma dessas festividades cristo-mercantis em que os parentes saem das profundezas e se reúnem pra palpitar na sua vida, promover rivalidade entre primos, consumir drogas lícitas, trocar lembrancinhas e comentários passivo-agressivos enquanto se empanturram de comida e auto-indulgência.


Pois que, dada a oportunidade, minha então melhor amiga, no auge de seus catorze anos, resolveu presentear um tio com um pênis de chocolate.


Naquela época não havia essa mamata de hoje, em que se compra tudo pela internet, muito menos docerias hipsters vendendo genitais de glacê em plena luz do dia. O único lugar possível pra se comprar uma manjuba comemorativa era o bom e velho sex shop. Infelizmente, tais épocas festivas servem não apenas para movimentar o comércio, mas também, sobretudo, pra alimentar o sacrossanto sentimento de culpa e vergonha, elemento basilar de toda sociedade de bem que se preze. Assim, por mais sedutora que fosse a voz do deboche juvenil, minha amiga não estava confortável com a ideia de cabular aula e se esgueirar por um antro de perdição na busca de um falo comemorativo, ainda mais durante a quaresma, e pior ainda com aquela vizinhança mexeriquenta, o que dificultava substancialmente a tarefa. Então, minha amiga fez o que qualquer jovem inteligente no bairro fazia quando se encontrava diante de dilemas existenciais complexos e potencialmente constrangedores: pediu ajuda pra minha mãe.


Quando, levemente encabulados, contamos para minha mãe que precisávamos que ela comprasse um chocopau, dona Ana Maria ficou bastante ofendida. Afinal, como eu podia ter a ousadia de querer pagar por chocolate de outra pessoa, quando sabia bem que mamãe, a melhor doceira do universo, podia fazer um badalo mais suculento, bem torneado, reluzente e fartmente recheado, tudo à preço de custo?! Moleque burro da porra…


Minha mãe foi naquela mesma tarde comprar a forma. Recheou o vergalho com leite condensado, caprichou nas veias, fez um acabamento primoroso na base. Colocou numa caixa de presente e fez um embrulho bonito com laço de fita. Minha amiga ficou bastante satisfeita com o artesanato, e parece que o tio também se lambuzou com gosto depois da missa.


Foi a única vez que vi aquela forma ser usada. Depois, ficou por anos amarelando no armário, mas acho que valeu o custo. Não me lembro quem ficou com ela depois que minha mãe morreu, mas espero que esteja sendo bem usada. Gosto de pensar que alguém por aí está tendo uma páscoa serelepe com ela.


Essa história me lembra que meu pai sempre reclamou de como os doces que mamãe fazia davam mais prejuízo do que qualquer coisa. De fato, dona Ana era uma péssima empreendedora: fazia experimentos mirabolantes com recheios de bolo só pela graça de misturar; desenhava com granulado e confeitos como monges desenham mandalas na areia; distribuía pães de mel pra vizinhança. No fim, lucrava quase nada, mas ganhava seu outro tanto em troca.


Acho que talvez por isso a páscoa fosse importante pra ela, que celebrava tanto Jesus quanto Ishtar e sabia bem que chocolate comunga melhor que sangue. Minha mãe fazia doces como quem multiplica pães.

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