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TEXTOS

  • Foto do escritorPlínio Zuni

Dez anos do nosso último abraço

Mãe, ontem fez dez anos desde o nosso último abraço. Mas eu ainda te vejo e te sinto todo dia.

Dez anos do nosso último abraço

Na semana passada, véspera do teu aniversário, fui no cinema assistir A Vida Invisível, e chorei tanto, mãe, pensando na vida invisível que você levou na nossa casa… Eu nunca te contei, mas tinha uma voz na minha cabeça dizendo que o câncer que te corroía era feito de tristeza. Uma tristeza sufocada, misto de ausência e expectativa, escondida por baixo do avental. E pensei na vovó, que tinha as olheiras mais azuis do mundo, e pensei na minha vizinha que vende quitutes na esquina e me diz sempre que eu compro um salgado “bom dia, menino, bom trabalho, e que deus e nosso senhor jesus cristo te guardem e acompanhem”, e de verdade, mãe, eu nem gosto dos salgados que ela vende, e você sabe que eu nunca fui lá muito fã dessa coisa de jesus, mas é que ela me lembra tanto de você e da vovó e da Guida e da Euridice Gusmão, que eu compro sempre…

Sabe, mãe, recentemente eu entendi uma coisa importante sobre amor e ódio. Eu passei todos esses anos tentando ser o oposto do meu pai, enxergando ele nos erros de todos os outros homens e odiando em mim tudo o que me lembrava eles, quando eu deveria simplesmente ter me focado em ser mais como você. Eu queria, desde pequeno, ter aprendido a tua coragem colorida e desprendida, que escolhe a alegria ao invés do rancor e que não dá a mínima pra o que pensam os outros. A tua coragem que não vê fragilidade em um coração exposto e um sorriso aberto. A tua coragem, mãe, ao invés dessa bravata patética de queixo erguido e peito trancado em que os homens me treinaram. Eu queria ter entendido mais cedo o seu jeito de ser forte. Mas tenho tentado, juro que tenho.

Se nesse aniversário eu pudesse passar na sua casa, tomar um dos seus chás de bruxa e comer um pedaço do bolo de um sabor novo que você acabou de inventar, eu te perguntaria sobre quem você seria se não fossemos nós atravessando o seu caminho. Abriria uma garrafa de vinho pra você me contar tudo que precisou esquecer pra sobreviver às nossas fogueiras. Em seguida, te contaria minhas coisas mais secretas, vestiria a camisa de seda cigana que você me deu e eu quase nunca usei porque, francamente, era meio brega demais, e te levaria pra dançar.

Eu penso em você sempre que ouço Elis ou que vejo um beija-flor.

Mãe, eu bem que tento, mas as minhas plantas sempre morrem. Não herdei o seu talento de falar com as flores, nem sei diferenciar as ervas daninhas. Mas hoje fui ao parque pra escutar as árvores do jeito que você me ensinou. Choveu levinho fazendo sol. O musgo, muitíssíssimo verde brotando nas cascas molhadas das árvores, era tão macio que me deu saudade de deitar no seu colo. E tinha uma árvore enorme, você tinha que ver, sustentando cipós, samambaias, flores e cogumelos lindíssimos, colméias, ninhos de pássaros, tanta vida transitando nos galhos firmes, estendidos numa postura de abraço que encobria o céu e a chuva, deixando passar só os feixes de luz mais bonitos. No tronco, ela tem uma abertura, e dentro é tão aconchegante que todo o som ao redor, desde os carros na avenida até a algazarra dos pássaros, se abafa e vira um murmúrio manso, quase uma oração ou canção de ninar. Essa árvore parece você.

Dez anos do nosso último abraço

Mãe, eu sinto você toda vez que leio Cecília Meireles. Você provavelmente não ia gostar que eu te visse na melancolia da Cecília, porque isso quebraria o seu disfarce de que estava sempre tudo bem. Mas é inevitável. Tenho comigo o livro que a Thais te deu no seu aniversário de dezoito anos. Não tem nenhum poema marcado, mas eu imagino quais eram os seus favoritos. Me pergunto se vocẽ gostava de Hilda como eu queria que você gostasse.

Dez anos sem a sua voz. Mas você fala comigo um pouco em quase tudo que eu escrevo. Prometo que um dia ainda te faço um poema bonito do jeito que você merece. Porque, mesmo sem olhos, você sempre me lê.

Não é bem saudade o que eu sinto, porque você está aqui comigo.

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Renata Menegatti
Renata Menegatti
Mar 31, 2020

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