"A grande arte exige amor e ódio."
— Bertold Brecht
"Porém, o meu ódio é o melhor de mim."
— Carlos Drummond de Andrade
há uma raiva que move
há uma raiva que mata
eu não posso odiar meu povo!
já respeitar, não sei se é possível
e tem ficado cada vez mais difícil
dar bom dia ao vizinho
como quem dá a outra face
respiro devagar e repito como um mantra
"Paz entre Nós, guerra aos Senhores!"
mas os às vezes a vontade é mesmo
só mandar tudo à merda
há um ranço de cansaço…
um desgosto com a espécie
que cresce conforme o gado
se avoluma na avenida
ah, quem me dera poder crer no conto
da conciliação de classes…
no mito cretino da cordialidade brasileira
ou na balela dos “casos isolados”,
“só algumas maçãs podres”,
“incidentes infelízes”…
não!
é preciso amputar pelas raízes
os tumores semeados nesta terra
há cento e cinquenta anos Castro Alves já perguntava
"Que bandeira é esta que serve à um povo de mortalha?"
todas as fardas
estão manchadas
do mesmo amarelo covarde
em que se douram
mercenários
e se nos templos o rebanho contemplasse um paraíso
só um parecido com a ideia de comunhão…
ou se os pastores aprendessem a pregar a piedade
ao invés de mais suplício, propaganda, preconceito e perseguição…
ou se os cristãos, por milagre, transformassem suas cruzes
em algo mais do que cruzadas e instrumentos de tortura,
aí então,
talvez
na religião ainda restasse algum resquício de redenção…
mas só o que sinto é o fedor das fogueiras
transubstanciando em pecado
todo prazer, amor, liberdade, ciência
repetindo o pior de seu passado
de obscurantismo e violência
em louvor da cegueira ajoelhada
de que nos serve um deus que não sabe dançar?
e enquanto o povo dorme
sob a sombra de estátuas
heroicizando a história torpe
de assassinos, déspotas, escravocratas
se perpetua a pátria falcatrua
apertando o garrote da ignorância
a nos estrangular
é preciso pôr fogo em tudo!
mas me diga, companheiro carlos
como, sem armas, revoltar-me?
eu sei que não posso aceitar a vingança
como princípio de reciprocidade!
ninguém é livre se justiça
se confunde com a força
do terror, das balas e das grades!
mas quando assisto o sadismo
da aristocracia carniceira
desfilando em liteiras douradas
sobre ossadas de inocentes
e miseráveis
fica difícil desconsiderar os gulags…
o pensamento me embrulha o estômago
e sigo engolindo angústias a seco
cogitando se os coágulos
que acumulo na consciência
são só sequelas da sobrevivência
na selva da necropolítica
ou se o desgaste do combate
não instiga também o gosto
pelas guilhotinas
eu bem queria falar de flores…
mas foi a televisão que pediu
pra imaginar o Brasil que eu queria
até tentei arquitetar uma utopia
mas quando percebi, saiu uma cantiga
que meio que dizia assim:
soariam hinos de glória
os sacros sinos da catedral
badalando ao balanço do corpo
do último banqueiro enforcado
nas tripas do último general
óh, que harmônico seria
o meu país ideal…
mas me estremece o riso desse canto
porque há, nesse ódio, também um medo
de que os os meios me transformem
— justamente —
naquilo que mais odeio
e é claro que seria incrível
declamar pelas praças discursos de paz
se pelo menos
o branco / preto
e o vermelho que escorre nos guetos
nos permitisse o luxo
das áreas cinzentas
mas há um apartheid.
eu não queria sangrar o poema
mas há uma dor que motiva
e uma outra que envenena
é delas que extraio a tinta
em que afogo a minha pena
como se afogam lentamente
aqueles que me lêem
eu não queria escrever um poema de ódio
mas é melhor do que rezar
Oh, Grande Fúria, daí-me forças
pra fazer da palavra uma faca
Porque se essa é a raiva que me move
é também a raiva o que me mata
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