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TEXTOS

  • Plínio Zuni

Como escrever em meio à barbárie


Sabe, eu realmente sinto falta de fazer textões, analisar o pandemônio político, discutir as polêmicas todas. Eu era bom nisso. Até mais ou menos outubro de 2018, eu costumava postar uma média de dois a quatro textos grandes por semana. Escrevia todo tipo de coisa, mas o principal eram os textões. Eu tinha um prazer real em ler calhamaços de artigos, organizar e disponibilizar material informativo, tabelas, estatísticas, sintetizar tudo do jeito mais didático possível, na esperança de que isso pudesse ajudar alguém. E eu gastava um tempo enorme com quem discordava de mim. Discutia pacientemente com cada tiozinho reaça, moleque ancap e demais pré-bolsonaristas que apareciam nos comentários. Muito do que eu escrevia era pensando justamente nessas pessoas. Era um inferno, e ao mesmo tempo eu adorava. Mas já faz algum tempo que não consigo. E isso pode parecer bobagem, frescura, de repente até um tipo de libertação, sei lá... mas significa que alguma coisa em mim morreu. Em grande parte, eu escrevia porque realmente acreditava que ninguém é 100% idiota. As pessoas podiam ser mal-informadas, distraídas, conformistas, manipuladas... mas nunca totalmente idiotas. Em adição, eu também achava que a maioria das pessoas que diziam coisas absurdas não eram necessariamente gente escrota. Talvez boa parte delas só tivessem muitos medos, inseguranças e frustrações mal resolvidas, ou provavelmente seriam apenas o produto de uma socialização machista, do sistema de produção capitalista, da ideologia de dominação religiosa, do adestramento militar, do programa do silvio santos, enfim... todas as desculpas. Então, quando escrevia, eu tentava partir dessa premissa. Da ideia (bastante ingênua) de que ninguém é naturalmente idiota ou escroto. E era muito importante pensar isso, porque era o único jeito de tratar essas pessoas com algum respeito. Pra não enxergar as pessosa ao meu redor como inimigos, era preciso acreditar que essas pessoas só defendiam o indefensável porque desconheciam a realidade, ou porque nunca haviam tido a oportunidade de pensar nas coisas de um ponto de vista diferente, ou porque não percebiam o quanto estavam dando um tiro no próprio pé. E aí, movido pela prepotência juvenil, acreditei que textos, argumentos e imagens servissem como trabalho de base e pudessem despertar alguma centelha nessa gente. Eu mirava alto, porque, sendo muito besta, acreditava que o raciocínio lógico e a capacidade de empatia eram as coisas que mais definiam a condição humana. E é claro que isso não dava certo na maior parte dos casos, mas, na pior das hipóteses, ainda era capaz que, pelo menos, algumas dessas pessoas pudessem se enxergar numa sátira e sentir vergonha. Foi isso que me levou pro jornalismo, pras salas de aula, pra militância, pra literatura. Sabe como é, utopias... Mas os últimos meses mostraram que eu estava errado. A maioria das pessoas é, sim, completamente idiota. A começar por mim. O caso é que eu — tão cético, materialista, ateu, existencialista... — escrevia por um ato de fé. Uma crença idealista sobre a essência humana. Mesmo negando isso em público, achando ridículo, sendo sarcástico, lá no fundo eu acreditava. Mesmo tendo visto coisas atrozes, nascido com os pés fincados no rés do chão e levado muita, mas muita porrada mesmo, eu me forçava a acreditar. Porque, ainda que esse não fosse o único motivo pra escrever, estudar, trabalhar, levantar da cama todas as manhãs e encarar esse mundo de merda... era certamente um pilar central. Acho que isso é o que mais me dói. Desde a eleição do genocida, uma parte de mim morreu. Depois de ver os fanáticos bloqueando hospitais, arrancando cruzes da praia, defendendo o fim do fundeb, atirando nas janelas durante panelaços, não dá mais pra negar que a podridão é inerente a essa gente. Quem, nesse ponto do brasil, ainda apoia o bolsonaro, não pode ser considerado um ser humano. Eu não vejo mais diferença entre o meu vizinho e um fuzil, ou entre a sua tia fascista e a damares, ou entre aquele colega de trabalho que compartilha fake news, o coach de instagram, o ex-amigo heterotoper, o paulo guedes, o véio da havan, o abraham weintraub e um tumor maligno. Tudo um bando de escrotos. E se fosse só uma desilusão, um choque de realidade, um membro amputado, seria bem mais fácil. Mas eu venho carregando esse cadáver no peito, e o cheiro putrefato me adoece. Junto com meus textos, o tecido necrosado me devora. Primeiro, parei de discutir com essa "gente", comentar as notícias e escrever textões didáticos. Provavelmente você também tenha passado por isso. Afinal, se antes já era difícil conscientizar as pessoas sobre as contradições do neoliberalismo, passamos ao ultraje de ter que explicar que não é legal ser nazista. E de que adianta o discurso racional com quem acredita em terra plana, mamadeira de piroca, anarcocapitalismo, cloroquina e olavo de carvalho? De que servem estatísticas, pesquisas, registros históricos ou provas factuais contra uma turba que odeia professores, despreza cientistas e quer queimar as universidades? Não dá pra argumentar com quem acha que estudar é coisa de vagabundo. E se a razão se tornou inviável, que dirá então o apelo à emoção... Pra que perder tempo perolando um texto pra atirar aos porcos? Contar histórias tristes, metáforas chocantes, expor as vísceras, falar sobre solidariedade... É inútil apelar pro coração de quem faz arminha com a mão. Como esperar empatia de quem aplaude o genocídio, zomba do sofrimento, se diverte com a opressão, lucra com a morte, reza pelo fim dos direitos humanos? Não importa quantas fotos de crianças mortas você mostre a esses monstros, nem os números da fome, nem os índices de feminicídio, nem relatórios da ONU, recortes de notícias, vídeos pelo whatsapp, nem os memes ou os tweets delatores do elon musk. Simplesmente, não vale a pena. No princípio, compreender que não há diálogo com o gado até parecia um alívio. Não vale a pena me desgastar com quem não merece nenhum respeito. Mas o problema é que um pedaço de mim morreu. Desde então, a parte que me sobrou está de luto, e "simplesmente não vale a pena" passou a ser o meu lema. Eu nunca mais consegui comentar as polêmicas da esquerda. Acompanho as disputas e intrigas partidárias, os debates estratégicos, tretas e picuinhas, mas suspiro e ignoro. Me dá preguiça explicar a incoerência da "polícia antifascista", ou o erro crasso que é a crença no lulismo sebastianista, a insensatez de tentar resgatar os símbolos nacionalistas, ou, ainda, essa birra infantil de "cancelar" subcelebridades por causa de frango frito, que olha, francamente… Eu vejo as armadilhas e me calo. Porque, simplesmente, não vale a pena o desgaste do aviso. Eu costumava escrever crônicas divertidas. Meu humor podia ser ácido, sarcástico, esquisito, mas era o meu jeito de leveza, e às vezes, até alegrava alguns leitores. Porém, agora que o riso virou ranço, já não acho graça em nada. Nem nos memes da ema, nem na mordida da naja, muito menos nas lágrimas dos minions arrependidos. Perante o apocalipse, toda piada parece hipócrita. Noventa mil mortos, e as hienas passeiam no shopping... Só os sádicos são felizes. Eu me torno a cada dia um velho mais casmurro, e os meus textos reduziram-se a xingos e lamentos. Eu não tenho mais paciência. Antigamente, me orgulhava de ser um excelente ouvinte. Ainda que tendesse à ermitão, os amigos sabiam que podiam contar comigo nas horas mais difíceis, pedir conselhos, desabafar angústias, tomar uma cerveja e me contar sobre os projetos e planos de futuro. Mas eu me distanciei de todo mundo. Não respondo as mensagens, confundo abraços com cobranças, e tenho um medo terrível de um dia ser grosseiro com os meus alunos. E você aí que está me lendo, é bem possível que eu lhe deva um pedido de desculpas. Foi mal aí… Agora é quase agosto. Meu livro, que já devia ter sido publicado, ainda está pela metade. Abro os arquivos de contos inacabados e leio as notas nas lacunas: "o enredo está muito caricato"; "falta desfecho"; "diálogo seco"; "cadê o cenário?"; "pare de torturar seus personagens". Anos atrás, uma professora muito sábia me disse que a revolução se faz com fuzis, e não com poemas. Eu encaro a página em branco e me pergunto se vale a pena... Tem sido tempos difíceis. Como aqueles de Ferllinghetti, quando escrever sobre o amor se torna quase um crime. E por mais que eu odeie o Adorno, finalmente entendo o que ele disse. Como, afinal, é possível escrever poemas após esse Auschwitz? Desculpe, agora eu percebo o quanto esse texto soa fatalista. Não se preocupe, isso não é um bilhete suicida nem carta de demissão. Muito pelo contrário. É só que alguma coisa em mim morreu, e eu estava de luto. Percebo agora que esse texto talvez seja o quinto estágio. Já neguei, senti ódio, fiz barganhas, me afundei na depressão, e agora já é hora de aceitar o que é o mundo. Por que só assim eu posso voltar a escrever. A poesia não irá salvar o mundo. Mas, francamente, essa nunca foi a sua função. E não sei se alguém realmente pode ser salvo, mas é por isso que existem os poetas. Pra compor, nesses tempos incertos, as cantigas de enganar-se. Pois foi o Carlos quem me disse que o mundo não vale o mundo, meu bem. Eu plantei um pé-de-sono, brotaram vinte roseiras. Se me cortei nelas todas e se todas se tingiram de um vago sangue jorrado ao capricho dos espinhos, não foi culpa de ninguém. O mundo, meu bem, não vale a pena, e a face serena vale a face torturada. Há muito aprendi a rir, de quê? de mim? ou de nada? O mundo, valer não vale. [...] Meu bem, usemos palavras. Façamos mundos: ideias. Deixemos o mundo aos outros, já que o querem gastar. Meu bem, sejamos fortíssimos [...] sejamos como se fôramos num mundo que fosse: o Mundo. ….. Eu não pretendo deixar o mundo aos outros. Lutemos, sim, mas só pelos nossos. Fazer poemas pra criar um Mundo em que não caibam esses bárbaros. Eles não valem a pena.


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