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TEXTOS

  • Foto do escritorPlínio Zuni

Carta aberta a Carlos Latuff


Carta aberta a Carlos Latuff
Ilustração: Vanessa Monteiro

Caro Carlos Lattuf,


Eu não escrevo aqui para falar em nome do Feminismo, porque esse papel não me cabe e não tenho esse direito ou capacidade. Eu escrevo essa carta enquanto ativista pela Causa Palestina, pra dizer que não posso aceitar que você use o prestígio que ganha defendendo a palestinos pra atacar mulheres e correntes Feministas.


A coisa mais vital a quem se propõe a ser apoiador de uma causa que não fala sobre si é aprender seu local de fala. Homens não podem decidir sobre a militância de mulheres, ocidentais não entendem o que significa ser palestino, e brancos não podem ensinar aos negros o que é o racismo. Isso não significa que não possamos falar sobre sionismo, machismo e racismo dentro da nossa esfera de atuação, mas devemos entender que quem vive seus dramas é que sabe quais são suas aspirações, necessidades e métodos de luta. Nós, enquanto homens, não podemos falar em nome das mulheres, porque isso é uma posição paternalista, é imposição e silenciamento disfarçados de benevolência.


Apoiar as Lutas Feministas é uma obrigação moral de quem entende a violência do machismo e acredita que um mundo diferente é possível. Isso não é sinal de nenhuma iluminação espiritual ou superioridade intelectual. Ninguém merece uma medalha por não ser um assediador, por não estuprar, por não agredir e por simplesmente ouvir e respeitar mulheres como seres humanos. Isso é decência, não nos concede nenhuma autoridade e não é mais do que o mínimo. Apoiar a Luta não nos dá o direito falar o que bem quisermos sobre ela.


Não é de hoje se ouve falar do seu machismo, Latuff, e recentemente você fez tudo o que estava a seu alcance para provar que essas acusações são verdadeiras. Você se revelou quando decidiu escrever um texto em defesa do Idelber Avelar, professor universitário acusado de usar seu prestígio acadêmico para assediar mulheres, e daí pra frente só se afundou.


Sabe, Carlos, é muito fácil pra mim e pra você denunciarmos a violência policial ou sionista, uma vez que não somos policiais nem israelenses. O bicho pega mesmo é quando falamos sobre machismo, já que nesse caso nós somos o inimigo. É preciso um tanto de humildade pra admitir que tudo o que você aprendeu sobre mulheres é um discurso opressor, e que vai dar bastante trabalho pra desaprender. É como uma criança israelense: ela não nasce um soldado segurando um fuzil e odiando palestinos, mas cresce ouvindo o discurso sionista, e ela tem muito a ganhar com essa ideologia. Ela não tem como enxergar os problemas desse discurso se não ouvir quieta o que palestinos dizem, sem espernear, chamar o Mossad ou fazer uma charge de mau gosto quando for contrariada.


No texto em defesa do Idelber Avelar você chama os escrachos virtuais de “moda”, ressaltando o seu medo de um dia ser também escrachado. Ao final do texto você comete o despautério oportunista, reducionista e anacrônico de comparar as práticas de denúncia de machismo feitas por grupos feministas na internet aos linchamentos e enforcamentos de negros feitos pela Klu Klux Klan. Você não compreende que essas campanhas de denúncia são uma ferramenta de defesa de quem não tem acesso a instituições oficiais que lhes forneçam o direito a essa mesma denúncia e defesa. Você não parece ter essa mesma dificuldade de compreensão quando fala sobre campanhas como o BDS, que, salvo as devidas proporções e diferenças, é também um instrumento de denúncia e defesa da sociedade civil palestina, que tampouco tem espaço na grande mídia ou acesso aos direitos que as instituições oficiais deveriam lhes garantir. Se você acha que ferramentas de denúncia de grupos auto-organizados, quando feitas por mulheres, são uma “moda” e uma prática de violência, então é bastante problemático que você defenda esses recursos quando usados por outros grupos. Ainda, é muito contraditório que você use suas charges para denunciar políticas e práticas opressivas de outros pessoas e negue o direito de Feministas também exporem e combaterem os homens que lhes agridem.

Segundo Latuff, o Feminismo que ataca os machistas de quem ele não gosta é libertador, enquanto que o Feminismo que ataca seus colegas é equiparável a um linchamento da Klu Klux Klan ou uma execução brutal por decapitação.


Errar, Carlos, é humano, mas insistir já é burrice. É normal pisar na bola, mas uma pessoa inteligente aprende quando alguém diz que você errou, ao invés de empacar, escoicear e zurrar na prancheta. Após ser criticado pelo texto em defesa do Idelber Avelar, você não apenas ignorou as mulheres que apontaram os problemas do seu texto, como publicou uma charge pavorosa sobre o Feminismo Radical. A coisa ficou feia, mas você não queria dar o braço a torcer, então usou um recurso retórico bastante infantil. Você postou uma “retratação” no seu blog, dizendo que:


A charge dá margem para interpretações equivocadas, e pode mesmo ser utilizada para endossar argumentos antifeministas, o que nunca foi minha intenção. O feminismo é relevante e necessário, e de fato, por mais agressiva que seja a abordagem, não são as radfem que mais matam no Brasil e no mundo e sim o machismo”.


Perceba, você não disse que a sua charge foi um erro, e sim que o erro foi das mulheres feministas que não souberam interpretar a sua charge. Você não disse que a sua charge, ridicularizando e atacando uma importante corrente critica feminista, era anti-feminista, e sim que ela “pode ser usada” para fins antifeministas. E você ainda diz que não são as radfems que “mais” matam, como se o feminismo matasse alguém. E, claro, não disse uma palavra sobre a comparação absurda com os linchamentos da Klu Klux Klan. Um malabarismo retórico bastante sujo, devo dizer.


Aqui seguem dois textos da blogueira Dani Bado que tratam mais extensivamente e com mais propriedade sobre seu pedido de desculpas e sobre a sua ultima charge.

O Feminismo Radical tem problemas? Deve ter, certamente, como toda teoria e movimento orgânico os têm, mas não sou eu ou você que vamos apontar esses problemas, e sim mulheres, sejam feministas radicais ou feministas de outras correntes. Apoiar o Feminismo significa, também, estar ciente de que mulheres são muito mais capazes de fazer essa critica do que homens, e que elas são as únicas que tem esse direito. Mulheres pensam, debatem, escrevem, militam e estão perfeitamente cientes dos rumos e relações das agendas e correntes Feministas, e não precisam que eu ou você demos pitacos amadores numa questão que envolve todos os aspectos das vidas delas. Se você não gosta de alguma campanha ou corrente critica feminista, basta que não declare seu apoio a ela (garanto que nenhuma mulher vai lamentar a sua, a minha ou a ausência de qualquer homem entre as fileiras de apoiadores). Elas se entendem entre elas, e se você não consegue respeitar isso, então você não apoia nem respeita mulher ou causa feminista nenhuma.


O recente caso Charlie Hebdo deveria lhe ser util pra repensar o papel destrutivo da imagem. Em entrevista ao jornal O Globo você declarou:


Não vejo como critica ao islamismo uma charge de Maomé sem roupa, de quatro, com o traseiro para cima. Acho isso provocação religiosa rasteira”.

Não entendo como, então, você pode acreditar que está fazendo uma crítica à sociedade patriarcal ao desenhar justamente uma mulher sem roupa, de quatro, com o traseiro pra cima sendo penetrada por um homem sem cabeça enquanto jura amor a você.Aparentemente você entende o problema de um jornal como o Charlie Hebdo fazer charges agressivas sobre uma minoria oprimida,cidadãos de segunda classe na França e com um histórico de colonização brutal. Você entende que essas charges, feitas por homens ateus franceses que não sofrem islamofobia e não tem relação identitária com o Islam, só servem pra aumentar o racismo e xenofobia na Europa. Me pergunto então como é que você não parou pra pensar que talvez fosse uma má ideia que um homem, heterossexual, cisgênero, vivendo em uma sociedade violentamente machista, fizesse desenhos sobre a vida sexual de mulheres, ignorando e debochando do que elas pensam sobre isso. E se você acha que por ser ““”esquerdista””” tem passe livre pra meter o bedelho na opressão alheia, vamos fazer o favor de lembrar que o pessoal do Charlie Hebdo já tinha ilustrado o Manifesto Comunista muito antes de você aprender a segurar um lápis, e olha só a lambança que eles fizeram.


Eu sei que você é um defensor do Poliamor, e que você alega que sua charge seria sobre esse tema, mas você não pode ser levado a sério quando diz que defende uma pratica de desconstrução da tradição monogâmica patriarcal e, ao mesmo tempo, bate o pé e faz beicinho quando mulheres te criticam por ser autoritário e machista. Quando faz isso, você só transforma a sua ideia de Poliamor em um outro jeito de opressão patriarcal. Recomendo alguns textos de mulheres que problematizam o Poliamor, publicados nos sites Incandescência, Capitolina e Versoando.


Após a publicação da sua ultima charge, duas mulheres decidiram responder com as suas armas. Elas desenharam uma charge em que, invertendo a situação, mostravam uma mulher prestes a lhe penetrar. Então, tal qual um menino birrento, você riu e escreveu que mulheres têm mesmo é “inveja do pênis”, e que “a mulher do desenho tem pau mas não sabe meter”. Em seguida, você se lançou em uma empreitada lastimável na sua página de facebook, relacionando Feminismo Radical à “intolerância” e “insanidade”, uma prática argumentativa bem comum quando faltam argumentos ou coragem aos homens, que rotulam mulheres de “loucas”, “histéricas” e “irracionais” para deslegitimá-las e fugir de uma discussão honesta.


Me espanta muito que alguém que fale tanto sobre Palestina e outras lutas não consiga fazer transposições simples. Você parece ser capaz de entender que palestinos tenham o direito de sentir raiva e ressentimento da sociedade israelense, que isso faz parte do processo pessoal de um grupo que nasce e morre subjugado por uma ideologia colonizadora, e que não isso significa que os palestinos queiram de fato “atirar os judeus ao mar”. Você compreende a diferença entre a raiva do oprimido e o discurso de ódio do opressor quando se trata da experiência palestina, mas não consegue entender o mesmo sobre mulheres que passam a vida toda sendo alvo das mais perversas formas de violência por uma sociedade patriarcal.


Um israelense que condene a Ocupação e continue vivendo em Israel, desfrutando dos benefícios de uma sociedade que se alimenta e enriquece através da colonização, continua sendo beneficiado pelo sistema colonial sionista. Da mesma maneira, eu e você somos beneficiados por uma sociedade machista, e não importa quantos textos e charges façamos, não importa quanta teoria leiamos ou quantas fotos segurando o Scum Manifesto com uma cara muito chateada você poste no seu facebook, nós continuamos sendo privilegiados por esse sistema. É natural, portanto, que um palestino olhe com desconfiança pra um israelense que se declare anti-sionista, porque ele cresceu em uma sociedade que produz sionistas, da mesma maneira que é natural que qualquer mulher olhe com desconfiança para homens, uma vez que todos somos, sim, estupradores em potencial. Ainda que eu e você não sejamos estupradores de fato, nós representamos a violência social contra mulheres através dos nossos inúmeros privilégios, posturas e discursos, no qual as suas charges se incluem.


Nós não temos como sair totalmente da posição de opressor, porque mesmo que fosse possível atravessar todo processo de desconstrução do nosso machismo, ainda seríamos lidos pela sociedade como homens, e isso nos garante uma credencial VIP nessa balada chamada mundo. A balança sempre vai ser desigual pra o nosso lado, mas nem tudo está perdido. Se não é possível estar totalmente isento de ser um opressor, você pode pelo menos abrir mão do seu privilégio de fala. Isso também não é nenhum ato de generosidade, e sim, novamente, uma questão de decência e respeito. Não é mais do que a obrigação de fazer o mínimo pra tentar não atrapalhar quem já tem muito problema pra lidar.

Enquanto pesquisava o que você pensa sobre desenhar mulheres, me deparei com uma entrevista particularmente perturbadora, concedida por você ao site Jornal Mulier em julho de 2011. Nela, a repórter lhe pergunta sobre como mulheres costumam ser retratadas, e você diz que é :


de forma geralmente caricata, ridícula, reflete o machismo dos próprios cartunistas. Só mesmo artistas que militam na esquerda é que costumam ter uma visão diferenciada”.

Você, Latuff, se arroga uma superioridade de perspectiva por se considerar “de esquerda”, como se a militância de esquerda fosse um espaço livre de machismo. Entretanto, a pergunta seguinte da entrevista foi “Você trabalha com, conhece ou poderia citar mulheres cartunistas?”e a sua resposta infeliz foi:


Conheço apenas a Mariana Massari, que creio ser mais ilustradora do que cartunista.

Tenho que te dizer, Carlos, que o seu esquerdismo libertário é bastante raso e oportunista.

Você se propõe constantemente a fazer charges em apoio a causas feministas, mas nunca, em suas mais de duas décadas de trabalho, se preocupou em conhecer mulheres que falem sobre si em charges. Assim, o que você faz não é defesa de uma causa, e sim apropriação.

Você, Latuff, ganha fama e prestígio fazendo desenhos sobre empoderamento de mulheres, mas parece ter medo de que mulheres possam falar por si e tirem de você o foco de luz. Se você realmente se importasse com mulheres, poderia muito bem dar espaço para que mulheres cartunistas tenham visibilidade neste meio totalmente dominado por homens. Você poderia (e deveria) aprender com mulheres que desenham mulheres antes de tentar desenhar mulheres. Já que você não se deu a esse trabalho, eu vou facilitar a sua vida: ao fim desse texto anexei alguns links para páginas de mulheres cartunistas. Fazer essa lista me custou poucas horas no Google, um site de uso muito simples e didático que você mesmo poderia ter usado se tivesse interesse em descobrir que mulheres também sabem desenhar. Aqui ó, deixa eu te ajudar.


Quando foi criticado, você escreveu sua página de facebook:


Patrulhamento ideológico NÃO funciona comigo. Continuarei desenhando tudo o que quiser e sentir, não importa os (as) idiotas!”.


Faltou muito pouco pra encarnar um Gentili e se declarar vítima da “patrulha do politicamente correto”. Carlinhos, eu achava que não era preciso lhe contar que quando alguém denuncia um discurso racista, machista, elitista, sionista e opressões etecetaras, isso não é “patrulhamento”, e sim Combateideológico. Você, como ilustrador e militante, é (mais ou menos) um profissional do combate ideológico, e portanto deveria entender essa diferença. Se não entende, é um mal profissional, e se entende, então foi hipócrita ao se esconder atrás do coxíssimo escudo do “essa é a minha opinião e não discuto com ofendidinho”.


Só pra provar que sua postura mimada não é de hoje, recordemos que em 2011, quando Ranya Keiy, uma mulher egípcia, lhe criticou no twitter por uma charge, você eloquentemente lhe respondeu em mensagem privada dizendo apenas, curto e grosso, “suck my dick”. O print, divulgado pela moça, pode ser visto aqui.


Por tudo isso, Latuff, enquanto militante apoiador da Causa Palestina, eu tenho a obrigação moral de rejeitar o seu trabalho, seja sobre Palestina, Oriente Médio, racismo, violência policial, Feminismo ou quaisquer outras questões, e convido a todos que lerem essa carta a fazerem o mesmo. Firmo aqui um compromisso: Nunca mais divulgarei ou usarei suas charges em textos, matérias, palestras, discussões ou qualquer outro meio. Seus desenhos já foram úteis muitas vezes, mas não valem mais do que as milhares de vozes, mentes, corpos e lutas de mulheres que fazem revoluções diárias nas ruas, em casa, no trabalho ou na internet pra ter os direitos e seguranças de que nós gozamos simplesmente por termos nascido com um pedaço de carne balançando entre as pernas.


É intolerável e inadmissível que um branco tente dizer para negros o que é ou não racismo; é intolerável e inadmissível que um sionista diga para um palestino de qual opressão ele tem ou não direito de reclamar; e é intolerável e inadmissível que um homem diga para mulheres qual feminismo é válido ou não. Se você não entende um destes itens, então não entende nenhum deles.


Entendeu, ou precisa que desenhe?

Carta aberta a Carlos Latuff
Ilustração de Vanessa Monteiro Cunha

Links para os trabalhos algumas mulheres brasileiras cartunistas:


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