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  • Foto do escritorPlínio Zuni

Capitalismo como religião: como se arrebanham os fundamentalistas

Esses dias me peguei pensando sobre o fim dos direitos trabalhistas, Silvio Santos, fundamentalismo religioso, Walter Benjamin, batedores de panela, prefeito cosplayer e no espanto de algumas pessoas com a existência de pobres de direita, e aí lembrei de um causo que aconteceu comigo no metrô.

Capitalismo como religião: como se arrebanham os fundamentalistas

Um tempo atrás conheci um tal de empreendedor liberal. Estávamos na linha amarela e ele me perguntou como chegar na estação Tietê. Eu estava indo pra Tiradentes, então disse que era só ele vir comigo que chegava lá. Ele vinha do interior, disse que nunca antes tinha visto o metrô de São Paulo e que estava muito impressionado como a funcionalidade e limpeza, elogiou as telas de tv passando propaganda dentro do túnel, adorou o fato de aquela linha ser privatizada e disse que não entendia como alguns paulistanos reclamavam do transporte. Então eu comentei sobre como o preço da passagem era abusivo. Foi o suficiente pra ele entrar em modo Comentarista do G1. Em síntese, o que se seguiu foi mais ou menos isso:

— O preço é justo! Olha só quanto funcionário tem aqui: faxineiro, segurança, operador de trem… Quanto você acha que custa manter essa gente toda? Você sabe o quanto custa um empregado no Brasil? Você queria que o empresário pagasse do próprio bolso? Que cortasse na própria carne? Já não basta todo o sacrifício, todo o trabalho, o tanto que o empresário sangra pra sustentar esse país? Vocês ainda querem passear graça? Não existe almoço grátis, rapaz! Se você quer alguma coisa, precisa trabalhar duro, acordar cedo, matar um leão por dia e, acima de tudo, nunca perder a fé! Eu sei como é difícil! Eu dou emprego pra duas funcionárias! Você sabe quanto me custa? Hein? Sabe quanto imposto o governo me rouba pra você poder andar nesse metrô bonito e ainda reclamar?

— Camarada, vai me desculpar, eu sei que a sua vida não deve ser fácil, mas eu estou falando aqui do grande empresariado, gente que sai de helicóptero pra almoçar, enquanto que, francamente, você tá indo pra rodoviária com uma mochila e uma sacola de feira. Dentro dessa escala, você está muito mais próximo daquele faxineiro ali que do grande empresário.

— Ah seu moleq…

O restante da conversa foi uma breve troca de ofensas, durante a qual, sou obrigado a reconhecer, meu adversário demonstrou uma impressionante criativamente e inclinação dramática ao descrever em detalhes as atrocidades com que deus iria me punir. Eu era, afinal, um herege.

Parei então pra comer um cachorro quente, deixar passar a raiva e comecei a pensar sobre a dinâmica ideológica e cadeia de produção do Fundamentalismo de Mercado.

Sabe, ao contrário do que imagina a maioria das pessoas, a noção moderna de fundamentalismo como a popularmente conhecemos não surgiu no Islã, mas sim entre as comunidades protestantes dos E.U.A. Guarde essa informação pra daqui a pouco, vai ser útil. Em uma concepção mais atual, fundamentalismo tornou-se sinônimo de crença cega, maniqueísmo, defesa irracional de uma ideia.

Na minha singela e poeticamente licenciosa compreensão, fundamentalismos podem ser vistos como idéias cristalizadas, construções culturais dogmáticas que se transmitem como sementes, germinando nos buracos de dúvida, enraizando fundo, crescendo pelos espaços em que não há luz, se alimentando da angústia e, em troca, ofertando oxigênio, alimento e uma estranha sensação de conforto ao hospedeiro, em uma relação simbiótica bastante compreensível dentro de certos contextos, porém terrível. Por isso, é importante se perguntar de onde surgem essas sementes, como se transmitem e por que vingam tão fundo, pra só então entender o seu produto final.

Pois que muito bem.

Uns dias atrás tive a infelicidade de esbarrar em um post de um jornalista que dizia o seguinte:

“Pergunta sincera aos trabalhadores com medo de serem terceirizados e transformados em Pessoa Jurídica, tornando-se assim empresários: se os empresários sempre levam a melhor e os trabalhadores a pior, por que vocês não querem virar empresários?!”

Sinceramente, me recuso a acreditar que o tal jornalista realmente não saiba a diferença entre um faxineiro terceirizado e o dono de uma multinacional. Ele simplesmente não pode ser tão idiota assim. O tal jornalista sabe muito bem quem são o empresários de quem falamos: os donos do Capital; os que estão acima da lei; os herdeiros; os cretinos que vestem gravatas mais caras do que dois meses do seu aluguel. Ele sabe que está equiparando o bóia-fria ao latifundiário, o segurança terceirizado ao banqueiro, o escritor freelancer ao dono do jornal, a revendedora de produtos Jequití ao Silvio Santos. Ele sabe de tudo isso, e não é por ignorância que ele faz essa comparação absurda. O tal jornalista diz essa barbaridade simplesmente porque, acima de tudo, ele sabe que a fórmula argumentativa que ele adota funciona e vai fazer as pessoas acreditarem nesse rebosteio argumentativo, uma vez que o “argumento” que ele usa, além de planificar a realidade numa relação simplista de toma-lá dá-cá, mexe diretamente no orgulho mais primitivo de quem lê. Faz com que o micro-empresário, o motorista do uber e o vendedor de água do farol se sintam na mesma posição que os donos do capital de que falamos há pouco, que são exemplos de sucesso e estampam todas as capas de revistas de fofocas do país. Essa estrutura argumetativa é amplamente conhecida e incessantemente usada pelos donos d’A Palavra pra manipular e induzir as pessoas ao erro lógico e passional desde muito antes de Aristóteles nomeá-la Sofisma, persistiu nos discursos políticos durante a ascensão dos fascismos da década de 1930 e sobrevive hoje com mais força do que nunca, seja em justificativas de economistas ultra-liberais para políticas de austeridade, em discursos de políticos neo-fascistas, em clichês vazios de “coaches” ou em posts de jornalistas como este imbecil de que tratamos aqui.

Quando você presta atenção no que o tal jornalista disse, parece ridículo que alguém realmente leia isso e caia em uma ideia tão vergonhosamente furada, mas aí um dia você esbarra num cara como esse empreendedor que encontrei mais cedo, perdido a caminho da rodoviária, carregando as roupas numa sacola de feira, que realmente acredita estar na mesma posição que os donos do consórcio da linha amarela do metrô. E aí a gente lê os comentários naquele post desonesto, vê as pessoas defendendo o fim dos próprios direitos e fica claro que, se tem uma coisa que não falta nesse mundo é gente que acredita. Gente que internalizou um tipo de certeza que nubla os contrastes, que demanda e ordena, que se impõe sobre os direitos e liberdades dos que nela creem, e estes aceitam de bom grado o próprio sacrifício em nome dessa crença. Gente que tem fé fervorosa no mito da meritocracia, e por esse mito sofrem, suam e se penitenciam na tentativa de ascender à condição beatífica de Self Made Man. Gente que tem fé.

E afinal, não é o capitalismo uma religião?

Max Weber explica perfeitamente, em “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, o modo como o desenvolvimento desse sistema econômico safado esteve intrinsecamente ligado à adesão de certos países ao protestantismo. Entre outras razões, a ética protestante calvinista prega que o trabalho é um fim em si mesmo e o sucesso material é um sinal de predileção divina. Logo, o trabalho agrada a Deus, que recompensa seus fiéis com riqueza, e portanto, quem é rico é também bom e justo aos olhos de Deus. As ideias religiosas que relacionam trabalho, riqueza e predileção divina foram vitais pra que países como Inglaterra e EUA prosperassem à partir do século XVII. O capitalismo absorveu e disseminou a ética protestante de tal maneira que rapidamente pode dispensar a estrutura tradicional da religião calvinista, passando a ser o próprio capitalismo uma religião secular.

Segundo Weber, a pedra fundamental do espírito capitalista na formação da mentalidade norte americana é o pensamento de Benjamin Franklin, cujo rosto está convenientemente estampado no maior dos textos sagrados d”O Mercado: as notas de cem dólares. Franklin escreveu um texto chamado Time is Money, no qual prega que:

- tempo é dinheiro;

- dinheiro é crédito;

- crédito é confiabilidade;

- tempo, dinheiro e crédito existem para gerar mais dinheiro e mais crédito, porque quem gera dinheiro é um trabalhador melhor e quem tem mais crédito é uma pessoa mais correta e confiável;

- Logo, dinheiro + crédito = moral.

Os bons fiéis do capitalismo devem trabalhar o mais arduamente durante o maior número de horas possível, acumular capital e reinvesti-lo, evitar os gastos mundanos e pagar suas dúvidas pontualmente para acumular mais crédito, em um ciclo infinito de prosperidade e ascensão. Nessa lógica, ser rico é também ser bom e justo aos olhos de Deus e da sociedade.

Riqueza equivale à moral, e assim surge a imagem sacrossanta d’O Empresário que todos aprendemos a amar e seguir.

Agora, imaginemos uma cena:

Brasil, anos 80–90, tardes de domingo. Provavelmente sua família estava na sala, digerindo o almoço, assistindo a um homem de terno que fazia aviõezinhos com notas de cem reais. Deixemos de lado questões sobre o gosto e ética extremamente questionáveis do programa ou do apresentador. A coisa mais importante sobre o Silvio Santos é o fato de que nem sempre ele foi o Patrão. O que importa mesmo é que todo domingo, nos intervalos do Topa Tudo por Dinheiro, a sua avó olhava pra você e dizia “sabe, o Silvio Santos era camelô, trabalhou muito, se fez do nada sozinho e hoje é o homem mais rico que existe. E você, meu neto, quando é que você vai cortar esse cabelo e comprar um terno, hein?”.

O Silvio é um dos grandes profetas do neoliberalismo brazuca porque ele é a “prova” de que é possível ficar milionário vendendo pente de plástico na rua e fazendo piada ruim. Ele se construiu em torno do mito da meritocracia e por isso tornou-se um modelo, uma figura de autoridade, um pastor d’O Mercado com direito livre e irrestrito à Palavra. Por isso ele pode ditar o que é moral e justo, jogar dinheiro pro alto e gargalhar enquanto humilha seus empregados e a multidão de mulheres pobres que vêm em caravanas pra balançar pompons na platéia, e todo o Brasil cresceu assistindo a isso religiosamente todo domingo, batendo palma em ritmo, ritmo de festa durante os últimos cinquenta anos. Ele entrou na sua casa e sentou na ponta da mesa, como aquele tio importante que veio da capital e trouxe presentes pra todo mundo. Ele é desagradável, racista, misógino e caduco, mas mesmo assim a gente não deixa de ter aquele carinho especial. E foi por muito pouco que nós não o elegemos presidente da república. Silvio Santos se tornou uma instituição patrimonial da família brasileira, e é bastante provável que uma parte íntima de você esteja ofendidíssima, me xingando muito porque é feio pichar monumento histórico, mas a verdade é que esse velho escroto é um dos maiores profetas do fundamentalismo de mercado em que estamos atolados hoje. O Silvio é um santo sujo de terno e gravata, transubstanciando desespero em dinheiro, e nós aprendemos a rezar em frente à televisão.

O Silvio cumpriu um papel importante para o deus Mercado, ensinando a alegria de poder queimar dinheiro e humilhar os empregados, mas é claro que não é o modelo definitivo d’O Empresário ideal. Os programas do SBT são lúdicos, alegóricos, mostram que você tem que sofrer e chorar, que tem que ter fé no sorteio da Telesena e que precisa se se rebaixar diante do sadismo do homem de terno, mas não representam corretamente toda a disciplina, ambição e devoção que o fiel capitalista precisa ter para merecer um cubículo sem janela no paraíso corporativo. Infelizmente, a cada dia surgem mais e mais pregadores. Empresários de mangas arregaçadas gritando ordens diante das câmeras. Reality Shows onde estagiários são demitidos ao vivo. Milionários declarando que dormem apenas quatro horas por noite pra não perder tempo. Pastores evangélicos vestidos como empresários recebendo dízimo via paypal. Jovens bonitos abrindo startups e fazendo lives no instagram sobre como enriquecer na bolsa com apenas a mesada milionária que ganhou do papai, e convencendo você de que pode fazer o mesmo com o lucro da venda de balas no farol. Livros de auto ajuda ensinando a “prosperar” por meios que beiram a psicopatia. Capitalistas “verdes” enfeitando o indefensável. Prefeitos que se vestem de gari enquanto leiloam os direitos básicos do cidadão em nas reuniões de um consórcio de milionários. E assim a gente vai se convencendo de que deus ajuda quem cedo madruga, só não lucra quem é preguiçoso, de que o trabalho análogo à escravidão enobrece o homem, e quem não chora não mama, just do it, querer é poder, no pain no gain, pisa mais que eu gosto, não pense em crise, trabalhe.

A disciplina do espírito capitalista é monástica, a estrutura é dogmática e o motor moral é baseado em culpa e punição. Se alguém é pobre, a razão só pode ser preguiça ou falta de ambição. É a ideologia perfeita para convencer as pessoas de que as injustiças do sistema são culpa única e exclusivamente delas mesmas. Se você foi à falência, é porque não pensou como um vencedor. Se não tem emprego, é porque não está se esforçando o suficiente. Se desenvolveu um distúrbio psíquico ou emocional, é porque é fraco. Se você aponta as causas externas de um problema social, é vitimista. Pobreza é pecado, então queimem o mendigo!

Dentro dessa lógica de masoquismo laboral e culpa cristã, a ideia de Direitos é inaceitável. Se o Ubermensch moderno é o Selfmade Man, e se o caminho pra ascender ao status de Selfmade Man é o acúmulo de riqueza pelo suor da própria testa, então a ideia de que uma outra entidade superior — esse demônio chamado Governo — está distribuindo riquezas pra quem não se dedica verdadeiramente à fé e disciplina d’O Mercado soa como trapaça, roubo, heresia. Daí vem o ódio contra quem recebe Bolsa-Família, o desprezo por serviços de assistência pública e, por fim, a negação dos próprios direitos, porque aceitar riqueza “sem suor torna” você um ser impuro, um pária, um infiel. E é aí que os crentes do capitalismo defendem o fim da CLT, a privatização do oxigênio e o linchamento do preto pobre.

Walter Benjamin disse que o capitalismo é uma religião sem sonho nem piedade. Nele não há descanso, pois o culto d’O Mercado é o trabalho e o consumo, e tempo é dinheiro, portanto toda forma de ócio é uma heresia. O que move o fiel capitalista é um desejo insaciável, uma vez que, como estipulou Ben Franklin, “nunca se permita pensar que você já tem tudo o que precisa”. O desejo de acúmulo e consumo sustenta e se retroalimenta pelo Mercado, que cria novas necessidades, novos desejos, novos vícios todos os dias, prendendo o fiel em um ciclo infinito de necessidade e angústia. Diante da insaciabilidade do desejo e da culpa, da selvageria e incompreensibilidade das Leis d’O Mercado e da impossibilidade material de sermos todos ricos, só o que resta ao pobre e cansado selfmade man é fé e frustração.

O que nos leva ao produto final da cadeia do fundamentalismo de mercado, ou seja, ao pobre microempresário a caminho da rodoviária, carregando suas roupas em sacolas de feira e esbravejando à plenos pulmões em defesa dos bilionários privatizaram o transporte público paulistano.

Sabe, acho que entendo o tal Empreendedor Liberal que não aceita a ideia de que o lucro do metrô seja abusivo. Ele não pode aceitar que os empresários que desviaram R$ 425.000.000,00 do consórcio do metrô deveriam “cortar na própria carne”, porque ele acredita que eles comungam da mesma carne, do mesmo sangue, do mesmo espírito, e ele teme que um dia tenha que cortar na própria carne também, sem entender que a carne dele já é o que esses bilionários comem no café da manhã. Entendo as pessoas que acreditam no sofisma vagabundo que o tal jornalista propôs no facebook, pois, mesmo que seja ridiculamente contraditório e estúpido afirmar que os terceirizados se tornarão empresários, o desejo de ascender ao status d’O Empresário é mais forte do que a razão. E entendo o trabalhador que renega os próprios direitos em prol da privatização, pois ele crê no mito da Meritocracia, e o medo de ser um vagabundo mamando nas tetas do governo é tão real quanto o medo de não ser aceito no Céu.

A mão invisível d’O Mercado é a mão invisível de um deus cruel. Quem ousa desafiar um gigantesco punho invisível pairando dia e noite sobre a sua cabeça?

No fim, cada fundamentalismo cria os homens-bomba de que precisa.


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