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  • Foto do escritorPlínio Zuni

Frio

Noite passada acordei às 4h da manhã. Meus pés estavam gelados, apesar dos três cobertores sobre mim. Levantei pra pegar um par de meias e consultei a temperatura no meu celular: 5° em Bethlehem.

Frio

Antes de voltar a deitar, olhando pela janela embaçada, lembrei que, naquela mesma hora, centenas de palestinos se espremiam em gaiolas no checkpoint 300, a poucos quilômetros da minha cama. Me lembrei de quando cheguei a Palestina, em dezembro, duas semanas após a nevasca. As ruas estavam cobertas de gelo, e eu esquentava água no fogão pra escovar os dentes.


Essa semana, mais uma notícia de totura por parte das forças de ocupação israelense chegava aos jornais locais. O Public Committee Against Torture in Israel relatava que, na unidade prisional de Ramla, duzias de prisioneiros — incluindo crianças — eram jogados no meio da noite em gaiolas de ferro, nas quais passavam horas expostos à chuva, vento e neve, até às seis da manhã, quando eram levados diretamente para o seu julgamento, em uma corte militar, onde os vereditos possíveis eram: prisão “administrativa”; passar mais tempo onde estavam sendo interrogados; ou a libertação mediante fiança e multas.


Agora é fevereiro, e o tempo esta muito melhor. Já não há uma camada de gelo sobre as calçadas, e escovo os dentes com a água que sai direto da torneira. A pior parte do inverno já passou, e esta noite dormi apenas com uma calça de moletom, uma blusa térmica, um gorro de lã, três cobertores e, ainda assim, acordei no meio da madrugada pra colocar meias. Meus dedos doem de frio enquanto digito. Entre uma frase e outra, aqueço minhas mãos entrelaçadas numa caneca de chá.


Penso em como as casas palestinas são mais frias do lado de dentro que do lado de fora. É uma arquitetura inteligente pra combater o calor infernal do verão, mas como só estive aqui em invernos, amaldiçoei muitas vezes essa idéia. Então penso nos milhares de palestinos que tem suas casas demolidas pelo exército e vão morar em tendas. Não imagino quantos cobertores são necessários para sobreviver numa tenda durante uma nevasca.


Essa manhã, quando me levantei pra escrever esse post, li que a Cruz Vermelha anunciou que não entregará mais tendas para os palestinos desabrigados. Eles alegam que, infelizmente, não há propósito em entregar abrigos aos palestinos, uma vez que o exercito destrói as tendas um ou dois dias após a entrega. Os militares dizem que destróem tendas de pano pelo mesmo motivo que demolem casas: elas são montadas ilegalmente, sem permissão do governo, sem documentos e carimbos que concedam o direito de uma família dormir coberta por uma lona fina em meio ao pior inverno do século, quando a neve acumulada atingiu quarenta centrimetros de altura nas ruas de Hebron. Então me lembrei das familias que se abrigam em cavernas nas montanhas, após suas casas serem demolidas, após suas barracas de lona serem rasgadas e terem as ferragens retorcidas por soldados vestindo uniformes térmicos. E então me lembrei das cavernas que vi no vale do Jordão, com suas entradas fechadas com arame farpado e placas. É, também, ilegal morar em cavernas sem a concessão de burocratas israelenses. Ainda é permitido morrer congelado, mas é incerto o direito de ser enterrado na sua terra.


Não consigo imaginar o que seja passar a madrugada sob chuva e neve em uma gaiola de ferro no ápice do inverno, após tantas sessões de interrogatório e tortura quanto o tempo tiver permitido. Não consigo imaginar o que seja viver em barracas de lona no deserto. Não consigo imaginar o que seja viver em cavernas quando, alguns quilômetros além, casas de colonos tem tapetes macios e grandes lareiras coloniais.


Então penso que, na minha cidade, os expropriados morrem de frio em bancos de praça, e a Cruz Vermelha nunca cogitou lhes entregar tendas de lona e kits de sobrevivência.

Meu corpo todo treme, mas já não é de frio.

Frio

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